Por Bianca Stella Azevedo Barroso*
18/05/2023 | 10h00

Em 16/5/2023, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (CCJ) aprovou a Proposta de Emenda à Constituição nº 09/2023, agora conhecida por PEC 09/23, que, em síntese, estabelece que “não serão aplicadas sanções de qualquer natureza” aos partidos que “não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça nas eleições de 2022 e anteriores” e também impede a sanção “de qualquer natureza” sobre prestação de contas de exercício financeiro de eleitorais dos partidos políticos que se derem anteriormente à promulgação dessa Emenda Constitucional.

Por favor, não vamos perder a memória.

Em setembro de 2021, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 111/2021 (EC 111/21), que, dentre as medidas legislativas, estabeleceu a contagem em dobro dos votos dados a candidatas mulheres ou pessoas negras, no que se refere aos cargos da Câmara dos Deputados, para a distribuição entre os partidos políticos dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha.

Como as campanhas eleitorais são caras e as mulheres e as pessoas negras têm uma dificuldade estrutural e histórica de acesso a esses recursos financeiros que viabilizem o êxito eleitoral, a promulgação da Emenda muito foi comemorada por esses grupos vulneráveis.

Daí se avizinharam as eleições de 2022. Consequentemente, o sistema político precisou encarar a falta de cumprimento, pelos partidos políticos, das ações afirmativas que vinham sendo construídas por decisões judiciais na Justiça Eleitoral e determinavam por estender o percentual de cota mínima dos 30% de candidaturas feminina por partidos e coligações para ser aplicável também aos fundos de campanhas e propagandas eleitorais para candidaturas delas.

Então, veio a EC 117/2022 que, no propósito de garantir a constitucionalização do regime de cota mínima para investimento nas candidaturas femininas, impediu a aplicação das sanções decorrentes do descumprimento das mesmas cotas que agora estaria garantindo o texto da Constituição.

O contrassenso legislativo constitucional poderia até ser difícil de explicar, mas fica fácil quando se parte do conhecido verbete popular do “ganha, mas não leva”.

Também fica mais fácil compreender essa questão quando se tem consciência de que a sociedade brasileira foi construída sob uma organização política estatal estruturalmente masculina, branca, patriarcal, elitista, heteronormativa e injusta, sob a perspectiva não apenas de gêneros, mas também de raças.

Neste contexto, a Proposta de Emenda Constitucional nº 09/2023 não deveria causar grandes surpresas, mas, ainda assim, surpreende por sua ousadia em assumir textual e publicamente a aposta no fracasso das políticas afirmativas.

Desta vez, com impactos negativos de proporções maiores por atingir o débil ensaio legislativo para proteção, incentivo e apoio a candidaturas negras.

Vale aqui rememorar que as ações afirmativas são políticas públicas adotadas pelo Estado voltadas a fortalecer grupos minoritários ou vulneráveis que, dentro da historicidade social, se encontram em desigualdades não justificadas por sua existência, mas em razão de decisões políticas anteriores que são responsáveis por causar a discriminação e exclusão, de modo que cabe à sociedade civil organizada, numa espécie de consciência de responsabilidade coletiva, reparar essa distorção precursora de injustiças. Flávia Piovesan, na obra “Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional” (Ed. Saraiva, 2022) leciona que essas medidas compensatórias aceleram a igualdade material e asseguram a diversidade e pluralidade, elementos necessários à democracia. Por sua vez, Michel Sandel, ao tratar da  ” JUSTIÇA. O que é fazer a coisa certa” (Ed. Civilização Brasileira, 2015) diz que as ações afirmativas têm dois argumentos fundamentais: “o argumento compensatório e o argumento da diversidade”.

Para Sandel, no que se refere ao argumento compensatório, as ações afirmativas servem para “compensar” danos e injustiças causadas no passado a minorias que sofrem com o histórico reconhecido de discriminação; em relação à diversidade, ela “se justificaria em nome do bem comum”, porquanto a integração com membros de outras culturas, raças, etnias e classes sociais aumentaria o alcance do conhecimento e permitiria que integrantes desses grupos assumissem postos de liderança profissional e na vida pública.

Assim, partindo da constatação da baixa representatividade feminina na política partidária, muito em função de um histórico de ausência de oportunidades e exclusão das mulheres em ambientes públicos, os organismos internacionais e movimentos feministas em todo o mundo vem recomendando em seus documentos que os Estados adotem medidas visando corrigir essa distopia social, inclusiva como objetivo ao desenvolvimento sustentável do planeta (Agenda 2030 – ONU).

A importância da mulher na política de maneira formal, através de mandatos populares ou por nomeação, foi utilizada como um indicador positivo para a qualidade da democracia, na clássica obra que analisa 36 modelos de países democráticos (AREND LIJHART. Civilização Brasileira, 2019)

Percebe-se que há um esforço coletivo de instituições, movimentos sociais feministas e agentes políticos no sentido de pressionar ações concretas pró grupos vulneráveis, porque compreendem a necessidade em reparar o passado de grandes injustiças,  e intensificar a luta por resultados efetivos de mudança social num futuro próximo no que diz respeito aos direitos das mulheres e também das pessoas negras, notadamente, a necessidade de ocupação dessas pessoas nos cargos de representação popular  no Brasil.

Enfim, caso a Proposta de Emenda Constitucional nº 09/2023 seja aprovada por todas as fases legislativas e venha a ser inserida no texto da Lei Maior, a blindagem constitucional concedida aos partidos políticos será o grande aval da não mudança do comportamento político-partidário. E segue o jogo de regras injustas, discriminatórias e machistas.

*Bianca Stella Azevedo Barroso, promotora de Justiça do MPPE. Membro auxiliar do CNMP. Ouvidoria da Mulher do CNMP. Coordenadora do GT do Ministério Público em Defesa da Democracia do CNMP.Vice-presidente do MPD

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Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica