Não raro a imprensa brasileira divulga fatos muito graves que culminam com mortes humanas causados por eventos da natureza ou acidentes provocados por veículos automotores. Quando não é apontada uma causa imediata que justifique os graves episódios (embriaguez, irregularidades na construção, dentre outros), todos lamentamos a infelicidade do triste desfecho.

Recentemente, no Estado do Rio de Janeiro, uma jovem de 22 anos, que estudava na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas/SP, esteve na Cidade Maravilhosa para desfrutar da companhia dos pais e familiares no último feriado, e consequentemente, o final de semana prolongado face o recesso nacional da Independência, no último dia -07.

Momentos familiares que promovem paz e saúde mental, alegrias compartilhadas e, inesperadamente, no último sábado, dia 09, a jovem que praticava exercício físico durante dia ensolarado no antigo Aeroclube de Nova Iguaçu, teve ceifada sua vida porque fora atingida por um ultraleve e-veículo automotor aéreo de pequeno porte-, cujo piloto compartilhava do mesmo locus para realizar atividade de lazer.

Não havia nenhum efeito externo, até agora comprovado, que justificasse conduta dolosa, e, também à primeira vista qualquer atividade culposa. Portanto, embriaguez e má conservação flagrante da pista do local, não foram causas apontadas para o trágico acidente.

Enquanto a jovem praticava corrida, foi abruptamente interrompida porque contra seu corpo, sem rumo, foi atingida pelo ultraleve em região letal e logo após, diagnosticada sua morte encefálica, e consequente óbito. O acaso… Será?

Numa investigação rápida e prefacial, independentemente da conclusão do Inquérito Policial que está em tramitação, constata-se que o local estava desativado para voos de quaisquer aeronaves desde o ano 2004 (quase 20 anos atrás), tendo a ANAC- agência nacional de aviação civil-, realizado convênio com o município sede- Nova Iguaçu- para administrar o espaço dando outra destinação à primitiva, já que se trata de terreno amplo ornado por vegetação a céu aberto e que a população local seria amplamente beneficiada.

Nada dificultoso obter dados comezinhos, de amplo conhecimento da população local, de que referido aeroclube, local do acidente, com muita frequência era utilizado por aeronaves de pequeno porte para uso recreativo. Afinal, todos poderiam desfrutar de tamanha área de lazer!

Nesse contexto, o acidente, o inesperado, e o aparente conformismo por conta do acaso restando aos familiares e amigos da jovem morta prematuramente, continuar na senda da vida procurando, cada qual à sua maneira, reunir forças para conviver com o pesado fardo do luto trágico.

O tempo urge e, não tardará, outra tragédia será anunciada na imprensa. Desviamos nossas atenções para esse fato último porque outro fato grave ocorre, quiçá mais grave- outra tragédia motivada por acidente. Acidente realmente imprevisível?

Os argumentos de poder bem próprios do nosso país que precisa sair do atraso, o “sabe com quem está falando”, não era incomum quando surgiam naquela localidade os “aeronautas” amadores em pista de uso absolutamente proibido ao tráfego. As autoridades de vigilância que deveriam coibir essa prática, onde estavam? Quantos anos, e décadas, essa situação absolutamente condenável ocorria: pessoas praticando atividades esportivas ao ar livre dividindo espaço legalmente interditado com praticantes de voo de ultraleve?

A nosso aviso, trata-se de “tragédia anunciada”, o que retira, absolutamente, o caráter da sua imprevisibilidade, apesar, frise-se, estar em tramitação o inquérito policial para apurar responsabilidade criminal, principalmente do condutor da aeronave denominada “ultraleve”.

Infelizmente, como esse grave episódio, somam-se outros que se popularizam como “tragédias inevitáveis”, a exemplo das que a natureza supostamente é a exclusiva responsável, já que não há “responsabilidade dos céus.”

O comportamento omissivo quanto à fiscalização fulcrada na imperdoável inércia e falta de comando estatal ou mesmo a conivência que confirma o atraso republicano do primo-irmão da corrupção nas práticas de favorecimento pessoal, devem ser veemente abolidas do nosso sistema federativo.

O mundo mudou, as pessoas estão cada vez mais conscientes que fazem parte de um todo, e merecem ser incluídas face o caráter plural da condição humana. A tecnologia lega ao mundo, cada vez mais novos equipamentos velozes com inúmeras funcionalidades, que podem ser utilizados a serviço da promoção dessa sociedade.

As campanhas de conscientização e o papel do Direito, enquanto instrumento hábil à adequação de comportamentos sociais aos moldes da tabua de valores concebidos, e insculpidos pelas normas, exerce papel relevantíssimo.

Há de reconhecer a importância dos autores pela omissão, na grande maioria entes governamentais, serem efetivamente responsabilizados, e que o retirem do escudo de proteção da não culpa por não agir de forma imediata, tal qual o condutor que dividia o mesmo espaço recreativo da jovem estudante, e muito menos se escorem na imprevisibilidade, no caso das catástrofes meteorológicas, cujos resultados, na grande maioria dos casos, seriam infinitamente menores, se houvesse um atuar positivo, comissivo, na busca de prevenção, e manutenção dos canais fluviais e pluviais.

Ao menos dessa forma, as tragédias não serão tão surpreendentemente imprevisíveis e a moralização de condutas pautadas na legalidade restarão mais apropriadas ao nosso Estado, que ainda procura se afirmar como Estado Democrático de Direito.

*Maria Fernanda Dias Mergulhão, promotora de Justiça MPRJ, ingressou em 1999, e foi defensora pública do mesmo Estado de 1996-1999. Possui doutorado e mestrado em Direito e mestrado em Sociologia. Professora e autora de obra e artigos jurídicos e sociológicos. Associada do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica