Por Júlio Marcelo de Oliveira*
09/02/2023 | 05h00

O dia 8 de janeiro de 2023 ficará marcado como um dia ultrajante na história de nossa jovem e frágil democracia. Um grupo de supostos manifestantes, em verdade criminosos, foi capaz de invadir e vandalizar a sede dos três poderes da República, com a condescendência de forças de segurança lenientes e omissas. Até mesmo o Palácio do Planalto, que conta com um batalhão do Exército com a finalidade precípua de lhe garantir segurança, foi alvo da horda de bárbaros que pretendia criar um estado de caos que pudesse justificar uma intervenção das Forças Armadas. Assim elas entrariam em cena não por vontade própria, não pela iniciativa de seus comandantes, mas para atender ao pedido de qualquer um dos três poderes.

Desde as eleições presidenciais de outubro passado persistiu uma mobilização de apoiadores do candidato derrotado no sentido da contestação da legitimidade do resultado das urnas. Com fundamento na narrativa de que as eleições não teriam sido limpas, corretas e justas, clamavam por uma intervenção das Forças Armadas para que se instituísse novamente um regime militar no Brasil, impedindo a posse e o governo do candidato eleito.

Para além das iniciativas desses apoiadores, chamava a atenção a leniência com que as autoridades constituídas, ainda sob a égide do governo anterior, tratavam suas ações, especialmente a Polícia Rodoviária Federal e o Exército, que tolerava acampamentos golpistas nas imediações dos quartéis, com destaque para o acampamento em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília.

Com o passar do tempo, as manifestações golpistas foram se tornando violentas. Em 12 de dezembro, data da diplomação do candidato eleito, o Setor Hoteleiro Norte, região central de Brasília, foi palco de incêndio de carros. Naquele momento já se apontava uma possível falta de ação repressiva da Polícia Militar de Brasília. Na véspera de Natal, descobriu-se um caminhão-tanque que seria usado como bomba a ser explodida na proximidades do Aeroporto de Brasília, revelando até onde estavam dispostos a ir os que clamavam por um golpe de estado.

A posse tranquila do novo governo, entretanto, sinalizou que o país poderia voltar à normalidade. Contudo, centenas de ônibus de diferentes partes do país dirigiram-se à Capital Federal para engrossar as manifestações. O acampamento em frente ao QG do Exército cresceu mais de dez vezes entre os dias 5 e 7 de janeiro. No dia 8, sob o olhar em estado de choque da Nação, as manifestações revelaram-se atos de destruição do patrimônio público, ataques físicos às instituições, num claro sinal de repúdio ao funcionamento das instituições democráticas. Imagens de policiais militares tomando água de coco enquanto o Congresso Nacional era agredido espantaram o país. O quebra-quebra no Palácio do Planalto, sem nenhuma proteção efetiva do Batalhão da Guarda Presidencial deixou os brasileiros perplexos.

A destruição física do plenário do STF, há muito eleito como principal inimigo do país pelos apoiadores do candidato derrotado, figurou como ápice da barbárie empreendida pelos criminosos manifestantes.

Fara frustração dos golpistas, os chefes dos três poderes tiveram a sabedoria de não solicitar a atuação das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, provável objetivo da ação coordenada de vandalismo. Tardiamente, já com a destruição em curso avançado, houve reação das forças policiais. Cerca de 1400 pessoas foram presas por participação nos ataques.

A reação do STF foi rápida. O governador do Distrito Federal foi afastado, O governo federal decretou intervenção federal na segurança pública do DF. Ordenou-se a imediata desmobilização dos acampamentos golpistas em frente às instalações militares. Contudo, de forma surpreendente, tanques blindados do Exército impediram que a Polícia Militar do DF entrasse no acampamento em frente ao Quartel-General para promover a sua desmobilização. Àquela altura, o que essa resistência poderia significar? Apenas no dia seguinte, o acampamento foi desmobilizado. Especula-se que, durante esse período de resistência e proteção injustificadas, centenas de golpista puderam fugir, possivelmente com armas ilícitas e outras evidências e provas que poderiam ter sido descobertas e apreendidas pela polícia.  É fato que muitos foram a Brasília com disposição para participar de uma guerra civil. Em nome de uma alegada defesa da liberdade, queriam um golpe de estado e a instituição de um regime que viola direitos e garantias, especialmente a liberdade.

Com o fracasso da intentona golpista, o momento atual é de investigação para futura responsabilização dos que planejaram, financiaram e participaram, por ação ou omissão deliberada, desse triste capítulo de nossa história recente. Com o retorno do funcionamento do Congresso Nacional e do Poder Judiciário, nossa democracia celebra sua resiliência, sua vitória sobre os que a queriam pisotear. Essa celebração é mesmo muito importante. É preciso reafirmar todo o tempo o valor – e os valores – da democracia.

Há, porém, uma reflexão que precisa ser feita com seriedade em algum momento próximo. Como e por que milhares, senão milhões de brasileiros se engajaram em um movimento golpista, ou pelo menos simpatizaram com ele? Por que esse desencanto com a democracia, essa nostalgia de um período sombrio de nossa história?

A resposta fácil, porém insuficiente, para o que ocorreu é a manipulação de segmentos da sociedade por meio de redes de difusão de Fake News e da criação de bolhas nas quais os participantes somente se informam a partir de conteúdos nelas mesmas gerados, com a descredibilização de tudo o mais que vem do mundo exterior à bolha. Assim como ocorre nas seitas, seus participantes são instruídos o tempo todo a rejeitar o quem vem de outras fontes de informação. Assim, tudo o que é produzido pelos veículos de comunicação mais conhecidos é previamente tido como mentira e tudo o que é produzido no interior da própria bolha é tomado como expressão da verdade, uma verdade a que só os membros têm acesso, porque fora da bolha tudo está contaminado, todos estão vendidos, ninguém é confiável.

Não há dúvida de que as Fake News tiveram papel muito importante em tudo o que ocorreu no país desde as eleições de 2018. No mundo todo, elas têm feito muito mal às democracias. O documentário Privacidade Hackeada mostra muito bem como Fake News direcionadas a pessoas previamente avaliadas por algoritmos como propensas a nelas acreditar pode influenciar o resultado de eleições, especialmente no caso de eleições muito disputadas, com vitórias estabelecidas com pequena margem, como a eleição do ex-Presidente Trump nos EUA em 2016. A mesma tecnologia foi utilizada em nosso país. Impedir a disseminação das Fake News e o sequestro da democracia por seus criadores e difusores é importante parte do problema.

Outra parte do problema, contudo, é entender por que há tantas pessoas no Brasil inclinadas a trocar a democracia por um regime autoritário. Por que grande parte do eleitorado brasileiro se sente frustrado com a democracia que construímos nos últimos 37 anos? Por que há tanto terreno fértil para a semeadura das Fake News? Por qual razão grande parte da população percebe as instituições como que de costas para suas aspirações?

Democracia não é apenas poder escolher os representantes e governantes de tempos em tempos. Também não é apenas um regime de liberdades garantidas aos cidadãos, como a liberdade de expressão ou de reunião. Esse modelo de democracia liberal com direitos de primeira geração já está há muito superado, porque francamente insuficiente. Mesmos o elenco de direitos sociais e direitos coletivos, como o meio ambiente saudável e sustentável, por si só, não conforma inteiramente uma democracia funcional. Os modernos estados democráticos de direito, como nós nos intitulamos, baseiam-se em três pilares: as liberdades, incluída a liberdade de escolher os governantes, a transparência na prestação de contas dos atos dos governantes e o império da lei, a submissão de todos à lei, por mais ricos e poderosos que sejam.

Por aí pode-se perceber como nossa democracia é claudicante. Respiramos liberdade, estamos alcançando razoável transparência, mas definitivamente não vivemos em um império da lei. Ao contrário, somos o país da impunidade, o país onde ricos e poderosos podem cometer crimes sem cumprir pena de prisão, mediante recursos e mais recursos até a chegada da indolente prescrição. Alguns conseguem habeas corpus para trancar ações penais e até mesmo investigações. Note-se bem, na sociedade brasileira alguns são tão intocáveis que sequer podem ser investigados, quanto mais punidos. Essa percepção de impunidade gera um déficit de credibilidade em nossas instituições que alimenta o caldo de cultura subjacente ao desencanto com a democracia. É como se ela se tornasse, aos olhos de parte da sociedade, um falso brilhante, uma promessa na qual não valeria a pena acreditar ou por ela lutar. Isso é muito grave. Isso precisa ser revertido.

Depois do 8 de janeiro, ouve-se o tempo todo que as instituições estão funcionando muito bem, tanto que resistiram à nefasta tentativa de golpe. Que ótimo que estão funcionando, mas estarão de fato funcionando muito bem quando o cidadão comum perceber nelas o papel de guardiãs de todos os pilares da democracia, não apenas de alguns. Não se trata de buscar ser popular ou de se negar o papel contramajoritário que as instituições por vezes precisam desempenhar, mas de conquistar credibilidade, legitimidade e respeitabilidade, o que não se alcança por decreto ou discurso, mas com trabalho sério e consistente ao longo do tempo. Temos muitos desafios pela frente.

*Júlio Marcelo de Oliveira, procurador de Contas junto ao TCU

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica