Por Celeste Leite dos Santos e Rui Goethe Costa Falcão*
27/04/2023 | 05h00

O panorama atual da proteção aos direitos humanos das vítimas no Brasil é praticamente inexistente. A ausência de informação adequada quanto ao seu exercício, mecanismos efetivos de participação e a excessiva morosidade judicial nos permitem aquilatar a inferioridade da vítima em relação aos autores de fatos delituosos. A propalada crise do direito penal traduz uma crise de legitimidade das instituições, já que o interesse do Estado sempre teve por eixo central a persecução e punição do autor do fato. O sistema jurídico não possui disposições suficientes para reparar os efeitos do delito, devendo ser construídos caminhos restaurativos dentro e fora do âmbito estrito do processo penal (cf. Santos e Falcão, 2023, p. 17 e ss.).

A própria análise da origem da palavra vítima nos denota uma condição de vulnerabilidade que foi acentuada pela ideologia liberal com a assunção pelo Estado do monopólio do direito de punir. Neuman (1994, p. 27) esclarece que a palavra vítima tem origem nos vocábulos vincire (animais sacrificados a deuses e deusas) e vincere (representa o sujeito vencido). A substituição da vítima pela figura do Estado foi sendo paulatinamente construída ao longo do processo civilizatório. A Idade Antiga até o início da Idade Média é considerada a idade de ouro da vítima. Na segunda metade do século XII, houve a consolidação da monarquia medieval e a criação da figura do procurador do rei que passaria a representar a vítima em nome do rei. As ofensas cometidas passaram a ter duplo papel, eis que dirigidas também ao soberano, constituindo um ataque do indivíduo à lei do soberano. A noção de crime passa a estar vinculada não só à existência de um dano de um indivíduo contra o outro, mas primordialmente a ofensa de um indivíduo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano (lembrando que não havia propriamente Estado nessa época). No século XIII, há o desaparecimento da figura da vítima com o surgimento da inquisição e a criação da persecução penal pública, possibilitando a centralização do poder político nas monarquias absolutas. A expropriação da vítima do conflito por meio do desaparecimento da noção de dano como intrínseca ao delito, para Bovino (2006, p. 90), permitiu a criação do monopólio da persecução penal. Em vez de titular de direitos, a vítima passa a exercer o papel de colaboradora do Estado na obtenção da verdade, sendo reduzida à condição de mera testemunha. Tal fenômeno se acentuou com a Revolução Industrial, uma vez que as relações passaram a ser cada vez mais despersonalizadas. Nessa nova sociedade comunitária, o crime é visto com a ameaça ao tecido social que agora une as pessoas. Portanto, ao falarmos em crise do direito penal na realidade estar-se-á aduzindo à crise do monopólio estatal de punir, ante os crescentes movimentos sociais pelo reconhecimento de direitos, sentimento e interesses, sendo a figura da vítima produto da cultura contemporânea.

A conscientização da existência de que determinados coletivos vulneráveis possuem maior probabilidade de serem convolados em vítimas concretas, seja da prática de delitos, como também em casos de desastres naturais e calamidades públicas, denotam a urgência de fixação de marco legal protetivo dos direitos das vítimas. Em outras palavras, o paradigma liberal pautado tão somente pelo valor liberdade e o culto à perpetuação de seus dogmas colocam em risco a própria existência do Estado em si, eis que a sociedade já não é mais tida como um ente abstrato, mas se materializa por meio de indivíduos concretos que compõem determinado grupo ou segmento social. Ao lado do valor liberdade, devem ser paulatinamente incorporados os valores igualdade e justiça social, e isso implica a humanização na forma de resolução de conflito. Já não é mais o soberano que dita a existência da lei e a converte em ofensa pessoal ao Estado e a sua pessoa, mas o povo que elege seus representantes seguindo os ditames constitucionais.

A simbologia que envolve a figura da vítima e o postulado igualitário de acesso à justiça por todos os intervenientes em uma situação conflituosa permitem que haja a redefinição da forma de controle social por meio da interação dinâmica entre vítima e instituições. A preocupação sistemática com a figura da vítima passou a se desenvolver em 1945, quando Benjamin Mendelsohn cunhou, pela primeira vez, a expressão “vitimologia” como ciência autônoma dedicada ao estudo integral da pessoa da vítima, agregando perspectivas biológicas, psicológicas, morais, sociais, culturais, etc. Na sua definição, a vitimologia é a ciência responsável pelo estudo da vítima e da vitimização. Neuman (2006, p. 50-51), por sua vez, dividiu as vítimas em individuais, familiares, coletivas ou sociais (do sistema social). Para reequilibrar a equação em um sistema em que todos são cidadãos e não mero súditos, há que se reconhecer que, ao lado do direito do acusado a presunção de inocência, temos o direito da vítima de acesso à justiça. Por outro lado, com a Constituição de 1988 o Ministério Público deixa de ocupar o papel de procurador do rei ou, mais modernamente, do detentor do poder político, para representar única e exclusivamente a sociedade, o povo brasileiro. Essa mudança de papéis implica o de que a sua função primordial não é mais a persecução com vistas à obtenção da verdade formal dos fatos, mas o respeito aos direitos humanos de vítimas e ofensores.

Tramita no Congresso Nacional com pedido de deferimento de regime de urgência, o Projeto de Lei nº 3.890, de 2020, da Câmara dos Deputados, que visa instituir o “Estatuto da Vítima”. Este projeto, proposto pelo Deputado Rui Falcão, possui sua gênese em segmentos distintos do conhecimento científico participantes do Projeto de Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos (Projeto Avarc), sob a coordenação da Promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos. O Estatuto da Vítima (PL n. 3890/2020) visa estabelecer regras de proteção e tutela jurisdicional das vítimas, tanto individuais como coletivas. Optou-se pela adoção de conceito unitário de vítima, uma vez que a vitimização não é fenômeno restrito à existência de uma infração penal, mas possui como sua gênese também a ocorrência de desastres naturais e calamidades públicas. O Brasil experimentou movimento centrípeto de reconhecimento dos direitos das vítimas, fortemente influenciado pelo apelo midiático, pelo ativismo judicial e pelas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Partiu-se de vitimizações que atingiam grupos vulneráveis específicos estabelecendo-se diplomas que reconhecessem direitos limitados a determinado grupo ou tipologia de vítima. Exemplos desse movimento são a Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006), Lei Henry Borel (Lei n. 14.344, de 24 de maio de 2022), Lei 13.431/2017 (crianças e adolescentes), Lei 14.245/21 (Lei Mariana Ferrer) e Lei 14.321, de 2022 (crime de violência institucional). Nos países europeus o movimento foi centrífugo, já que primeiro cuidaram do estabelecimento de padrões mínimos de reconhecimento de direitos de todas as vítimas, independente da origem da vitimização, para somente em momento posterior passarem a editar diplomas específicos em relação a cada coletivo vulnerável. As duas opções são passíveis de críticas, porém veja-se que, no caso brasileiro, há o reforço a estereótipos de gênero, raça, origem por ausência de conscientização quanto ao caráter universal dos direitos tutelados pelos diplomas legislativos. Em vez de focar na construção de ambiente protetivo, possibilita-se a culpabilização da vítima, gerando ambiente propício para a ocorrência de vitimizações secundárias no ambiente institucional. No modelo proposto, ao lado das políticas criminais que visam coibir o crime e sua prática, passa-se a ter a obrigatoriedade do desenvolvimento de políticas voltadas à prevenção à vitimização, prevenção à revitimização e medidas de apoio e desvitimização.

O Estatuto da Vítima pretende conectar e coordenar a atenção às vítimas de crimes, desastres naturais e calamidades públicas, tendo em consideração certas premissas relevantes que contribuam a aumentar e melhorar a qualidade da atenção. Entre elas, merecem especial consideração a intervenção integral com a vítima, a eliminação da vitimização secundária e o tratamento do processo de vitimização. Devem ser desenvolvidas medidas preventivas primárias, ou seja, políticas públicas destinadas à comunidade e à melhora de suas condições de segurança coletiva e bem-estar. Paralelamente, devem ser desenvolvidas medidas preventivas secundárias, ou seja, aquelas que incidem sobre vítimas potenciais, especialmente nos coletivos mais vulneráveis. Por fim, as medidas preventivas terciárias se destinam à intervenção sobre aqueles que tenham sido vítimas.

*Celeste Leite dos Santos, presidente do Instituto Pró Vítima, Gestora do Projeto Avarc do Ministério Público do Estado de São Paulo, Idealizadora do Estatuto da  Vítima, Doutora pela USP, membro do MPD

*Rui Goethe Costa Falcão, deputado federal. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça, advogado e jornalista, presidente do PT (2013-2017)

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica