Ivan Carneiro Castanheiro 01 DEZEMBRO 2023 | 9min de leitura

Questão jurídica de grande importância para a ordem urbanística e à sustentabilidade urbano-ambiental (84% dos brasileiros vivem na zona urbana e são afetados, positiva ou negativamente, pelas regras de uso e ocupação do solo), vem sendo debatida nos últimos tempos entre juristas. Especialmente por aqueles que atuam no parcelamento e na regularização dos parcelamentos de solo/ocupações com fins urbanos (ainda que sejam casas de veraneio situadas na zona rural) irregulares (executados em desacordo com o ato de aprovação municipal) ou clandestinos (executados sem o formal conhecimento e aprovação do Município).

Vem sendo pregada por muitos operadores e doutrinadores da REURB (Regularização Fundiária Urbana) a tese de não haver, exceto em uma única hipótese a ser mais adiante mencionada, um marco final (limite temporal máximo) a partir do qual não será possível que se regularize núcleos urbanos que vierem a se consolidar.[1]

Com o devido respeito aos posicionamentos mais flexíveis, com base nos princípios e objetivos da Lei da REURB (13.465/17), somente devem ser regularizados núcleos urbanos pretéritos e que já estejam formados em 22/12/16 (aqueles de difícil desfazimento ou reversão) e não dos diversos tipos de fracionamento e uso do solo que ainda estão em formação ou que vierem a ilicitamente se iniciar.

A melhor intepretação da Lei da REURB é a de que somente serão passíveis de ser regularizados os núcleos urbanos informais consolidados até 22/12/16 (art. 23 da Lei 13.465/17)[2], caso não estejam em áreas de preservação permanente, pois nesta última hipótese o marco temporal será em 27/05/12 e não em 22/12/16, diante do disposto no art. 8º, § 4º, do denominado “Código Florestal” (Lei 12.651/12[3]).

Há quem faça uma interpretação literal do art. 23, “caput” da Lei 13.465/17, a qual limita no tempo, de forma expressa, somente a regularização fundiária na modalidade “legitimação fundiária” (art. 15, I, combinado com o artigo 23 da mencionada lei[4]) a ocupações consolidadas até 22/12/16. Por tal razão, prega-se, a “contrário sensu”, que os outros 14 institutos jurídicos que podem ser utilizados para a REURB (art. 15) podem ser aplicados para ocupações que vierem a se consolidar a qualquer tempo.

Inicialmente, importante ponderar que as regras constitucionais para transferências de domínio de terras públicas, em tese, eivam de inconstitucionalidade o art. 23 da Lei 13.465/17, visto que por tal dispositivo a legitimação fundiária constitui em forma originária de aquisição do direito real de propriedade no âmbito da REURB, contrariando o artigo 183, § 3º da Constituição Federal[5].

A interpretação permissiva de REURB de parcelamento que venha a ser consolidado em qualquer tempo, possibilitando uma regularização facilitada e financeiramente menos custosa que um parcelamento desde o início constituído dentro dos requisitos legais, contraria os próprios princípios do art. 9º, § 1º da Lei 13.465/17. Também é frontalmente contrária às normas de ordenamento territorial, sendo um incentivo à continuidade de ocupação do solo de forma clandestina ou irregular, com consequências nefastas aos moradores, em especial nos grandes centros urbanos (vide enchentes, inundações e desabamentos, vistos com maior frequência nos últimos tempos em razão das mudanças climáticas).

Como mais um reforço à existência de limite temporal para fins de regularização fundiária de núcleos habitacionais com finalidades urbanas, importante mencionar o disposto no art. 98 da própria Lei 13.465/17, permitindo e venda de imóveis do poder público para fins de REURB-E (regularização de interesse específico – ocupado por pessoas que não sejam de baixa renda), mas somente para as hipóteses de os imóveis encontrarem-se ocupados até 22 de dezembro de 2.016. Portanto, o disposto no art. 23 da mencionada lei não se aplica somente a uma modalidade de regularização, como se defende por vezes.

Ainda que desnecessária a existência de lei municipal para se implementar a REURB (art. 28, parágrafo único, da Lei 13.465/17), caso tal normativa venha a ser editada, para espancar qualquer discussão sobre o tema do marco legal, será por demais importante que a legislação municipal deixe expressa a limitação temporal extensível para todas as modalidades e instrumentos de REURB em 22/12/16. É princípio constitucional de legitimidade legislativa concorrente que o Município poderá ser mais rigoroso que a União. Tal possibilidade também pode ser extraída do v. acórdão preferido pelo STF, na ADI n. 5.696 e ADI 5.996, ambas de relatoria do eminente Ministro Alexandre de Moraes. Nesse sentido, podem ser mencionados, como exemplos, o art. 1º da Lei Complementar Municipal 404/2019 (Piracicaba), bem como o art. 1º da Lei Municipal 6.417/2020 de Americana, os quais vedaram a regularização de todo núcleo urbano informal com finalidade urbana que vier a se consolidar após 22/12/16.

De se ponderar que regularizar significa solucionar um passivo, ou seja, pendências decorrentes de irregularidades pretéritas na ocupação do solo urbano e não a sinalização de que problemas ainda não existentes (núcleos em fase inicial ou nem mesmo iniciados) possam ser resolvidos com a flexibilização das regras destinadas à regularização de núcleos de difícil reversão por já estarem consolidados em 22/11/16.

Admitir que no futuro possa haver a regularização de núcleos urbanos informais hoje em formação ou que vierem a ser iniciados, com as regras flexibilizadoras da REURB a incidirem quando da consolidação, será um incentivo à continuidade das práticas ilegais de parcelamento de solo, com desprezo a todo sistema jurídico vigente para as questões urbano-ambientais. Seria perpetuar a desordenada e não desejável da ocupação do solo urbano sem controle do poder público competente, que historicamente vem falhando na fiscalização preventiva, e mesma na corretiva, do uso inadequado do solo urbano. Essa possibilidade seria um contraponto ao planejamento urbano e ao bem-estar dos habitantes da cidade como um todo, em flagrante contrariedade às diretrizes art. 182 da Constituição Federal, às disposições do Estatuto da Cidade[6], bem como às diretrizes do art. 9º, § 1º da Lei 13.465/17[7] e aos seus objetivos expressos no art. 10, incisos VIII[8] e X.[9]

Em suma, a restrição do marco legal da REURB, em qualquer de suas modalidades, a 22/12/16, deve ser efetuada de maneira sistemática, levando-se em consideração a legislação supracitada e outras normas pertinentes. Não pode ser aceita, com o devido respeito a entendimentos diversos, uma descontextualizada interpretação “a contrário sensu” (invertida ou excludente de outras modalidades de REURB) do art. 23, “caput”, da Lei 13.465/17. Tal tese, inadequadamente, restringe o marco legal da possiblidade de regularização a 22/12/16 somente para os casos em que houver utilização do instituto jurídico da “legitimação fundiária”, ficando a regularização permitida para as demais modalidades de regularização, que poderia, então, ocorrer a qualquer tempo, mantendo “a porteira aberta” para a instituições de novos parcelamentos irregulares ou clandestinos.

A interpretação às avessas do mencionado dispositivo legal seria privilegiar o interesse particular dos diretamente beneficiados e não a supremacia do interesse público da totalidade dos habitantes de uma determinada cidade. A restrição temporal à regularização irá possibilitar que o solo urbano seja ocupado de maneira melhor ordenada, gerando bem-estar social e resiliência ou adaptação das cidades às mudanças climáticas, ou seja, a eventos extremos de seca e de chuva[10], enquanto a flexibilização para ilimitado prazo à efetivação da regularização em muito prejudicará o cumprimento das funções sociais da cidade, constitucionalmente garantidas, vez que se permite uma estrutura urbana precária como forma de facilitar que o núcleo urbano passe a integrar a cidade formal.

[1] Art. 11, III, da Lei 13.465/2017 conceitua núcleo urbano informal consolidado da seguinte forma: “aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo Município”;

[2] Consta de tal dispositivo legal. “A legitimação fundiária constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016.”

[3] Art. 8º A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental previstas nesta Lei.

  • 4º Não haverá, em qualquer hipótese, direito à regularização de futuras intervenções ou supressões de vegetação nativa, além das previstas nesta Lei.

[4] “A legitimação fundiária constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016.”

  • 1º Apenas na Reurb-S, a legitimação fundiária será concedida ao beneficiário, desde que atendidas as seguintes condições …”

[5] “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”.

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[6] art. 2º, IV (Planejamento do desenvolvimento da cidade como diretriz geral da política urbana); art. 4º, III (planejamento municipal como instrumento da política urbana); art. 36 (estudo prévio de impacto de vizinhança – EIV); art. 42-A, § 3º (adequação do Plano Diretor em relação às áreas de risco); art. 42-B (modificação do plano diretor para ampliação do perímetro urbano); art. 49 (prazos para expedição de diretrizes de empreendimentos urbanísticos).

[7] “Os poderes públicos formularão e desenvolverão no espaço urbano as políticas de suas competências de acordo com os princípios de sustentabilidade econômica, social e ambiental e ordenação territorial, buscando a ocupação do solo de maneira eficiente, combinando seu uso de forma funcional.”

[8] “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”;

[9] “Prevenir e desestimular a formação de novos núcleos urbanos informais”.

[10] Os quais tende a provocar crises no abastecimento público e inundações.

*Ivan Carneiro Castanheiro, promotor de Justiça – MPSP (GAEMA PCJ-Piracicaba). Mestre em Direito pela PUC-SP. Professor de Direito Ambiental e Urbanístico na ESMP-SP. Membro da Associação “Movimento do Ministério Público Democrático” (MPD). Professor Direito Ambiental, Administrativo e Constitucional, na UNIP/Limeira. Membro do Conselho Consultivo do Projeto “Conexão Água” (MPF). Coordenador do 17º Núcleo da ESMP (Piracicaba). Diretor de Publicações da ABRAMPA – Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público. Autor de capítulos de livros e artigos jurídicos na área ambiental e na urbanística. Membro do Observatório da Governança Ambiental do Brasil (OGAM)

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica