Por Andre Luis Alves de Melo*
24/08/2023 | 06h45

O que prevalece no processo penal brasileiro é a impunidade e não punitivismo, como se alardeia. No Brasil 60% dos processos penais prescrevem, e não há muita preocupação com isso. Outro ponto é que menos de 10% das ocorrências policiais feitas pela PM tornam-se Inquéritos Policiais ou TCOs pela Polícia Civil e não há um mecanismo de acompanhamento processual dos andamentos nos sites das polícias. Isso, sem falar na estatística do IBGE no sentido de que menos de 50% das vítimas de furto e roubo fazem ocorrência policial.

Pelo art. 3º-B do CPP deve-se comunicar ao Juiz de Garantias toda investigação criminal, mas e a população que não tem tido o direito de acompanhar o que aconteceu em relação aos crimes em que foi vítima por meio de acompanhamento processual nos sites das policiais? E o fato de que menos de 10% das ocorrências policiais viram Inquéritos e TCOS, como fica a cifra oculta dos demais 90%?

Para agravar a ineficiência processual penal enquanto em todos os países do mundo discutem o mito (princípio para muitos) da obrigatoriedade da ação penal (persecução penal), e seguem a tendência de ampliar a possibilidade de arquivamentos, tanto facultativos (discricionariedade) para acordos penais, como ações penais. No Brasil, ainda continua sem um debate técnico e confundem permitir acordo penal com discricionariedade, mas isto é obrigatoriedade de acordos penais, uma modalidade de persecução penal. O próprio nome de Acordo de Não Persecução Penal é impróprio, pois acordo penal é espécie de persecução penal, mas a doutrina confunde-se ao crer que persecução penal é apenas ação penal.

A maioria dos países já segue no sentido de admitirem a responsabilidade penal de pessoa jurídica, pois é mais racional e até evita a tão criticada pena de prisão. Argumentos retóricos como alegar que pessoa jurídica é apenas fictícia, sem vontade própria, são apenas artifícios, pois no direito civil também são fictícias e sem vontade própria, mas respondem por atos normalmente. E na Constituição Federal há previsão de crimes contra a ordem financeira e ambiental, mas isso não é o limite, apenas alçaram a possibilidade específica para alguns crimes, mas não impede que lei ordinária amplie o rol, se é que há necessidade de lei, pois a lei não afirma que apenas pessoas físicas cometem crimes.

No entanto, com tantos problemas e ineficiências no processo penal, erramos até mesmo na forma de se calcular o número de presos, pois se considerarmos o número de presos por cem mil habitantes e (efetivamente presos, (e não os de prisão fake domiciliar) caímos para o 30º lugar no mundo. Afinal, nos induzem em erro ao comparar número de presos em número absoluto e sem atentar que somos o 6º pais no mundo em população, e também incluindo presos domiciliares no cálculo como se fossem presos em presídios.

Falar em juiz de garantias em um país em que setores do Judiciário não respeitam nem o princípio acusatório previsto na Constituição Federal e no art. 3º-A do CPP chega a ser assustador. Primeiro deveríamos efetivar o processo acusatório e apenas depois discutir o de garantias, se o objetivo for mesmo de melhorar o processo penal.

Afinal, no Brasil há Juiz decreta de ofício prisão e buscas, e outras quebras de sigilo, ou seja, talvez seja também o garantismo do autoritarismo judicial. O juiz de garantias e o de Instrução estarão proibidos de decretar prisão de ofício? Ou de condenar sem pedido do Ministério Público? E remetendo para a instância ministerial superior ? Mas, se acolhido pela Procuradoria e nomeado outro Promotor, estaria o juiz que adiantou o mérito alegando que era caso de condenar, impedido de atuar no feito?

O art. 3º-B é expresso em afirmar que as decisões do juiz de garantia não vinculam o juiz de instrução, ou seja, teremos duas vezes na mesma instância discutindo sobre nulidades processuais, pois certamente a Defesa repetirá sempre os mesmos argumentos. E se o Juiz de instrução anular algum aspecto processual, volta para o Juiz de Garantias? Seria o Juiz de Instrução uma instância revisional, ainda que implicitamente? Na prática é certeza que acabará tendo uma instrução, ainda que sumária, na fase de garantias. Isso não se fala, mas é certo como se dois mais dois são quatro, e se for audiência, além da custódia, na fase de garantias então será o absoluto colapso por falta de pautas, e isso é o que justamente a Defesa quer, ou seja, ganhar tempo e tentar nulidades.

Agora surge como solução para todos os males do processo penal o Juiz de Garantias, onde o Juiz que eventualmente tenha atuado na fase de investigação deferindo algumas medidas cautelares como conversão em prisão preventiva na audiência de custódia estaria, em tese, impedido de julgar o processo, pois seria parcial. O julgamento está no STF, o qual tem votos no sentido de se implantar o juiz de garantias criado por lei em 2019, sem avaliar como funciona em outros países.

Considerando que o STF tem entendido pela validade do Juiz de Garantias, talvez o ideal seria ele mesmo iniciar a sua aplicação, ou seja, nos vários casos relevantes e conhecidos como corrupção da Petrobrás, Atos de 08 de janeiro, o Ministro que atuou na fase investigativa, não poderia ser o Relator, nem votar ou manifestar nestes julgamentos.

A aplicação do modelo de juiz de garantias será um desastre, mas terá um bom efeito, para a Defesa, aumentará as nulidades e também a prescrição em razão do aumento da tramitação processual. Embora os defensores do sistema de juiz de garantias digam o contrário, é óbvio que o resultado será de mais nulidade. Afinal, praticamente haverá “duas instâncias” na fase inicial, e é claro que haverá recursos e Habeas Corpus na fase investigativa e depois repetirão os mesmos questionamentos na fase de instrução judicial, pois é assim que sempre fazem. E isso sem falar nos eternos debates sobre quais provas obtidas na fase anterior terão que ser retiradas do processo para não “contaminar” o juiz de instrução. E mais nulidades, e mais lucros para quem atua nestes debates, notadamente a Defesa.

No Brasil a Defesa não discute a “culpa” (Responsabilidade penal, autoria) mas apenas focam na prescrição e em nulidades processuais. Alegar que o Juiz de Garantias reduzirá as nulidades é acreditar na “ingenuidade” das pessoas, pois a defesa sempre busca nulidade, e se não conseguir, então visa atrasar a marcha processual para obter futuramente a prescrição.

Conforme estatísticas menos de 10% dos réus são absolvidos por falta de provas, 20% são condenados, e em torno de quase 70% são beneficiados com prescrições e nulidades processuais, e estas últimas acabam facilitando prescrição ou alguma absolvição porque as provas foram nulas, pois se juiz fundamenta pouco para deferir é nula por falta de fundamentação, se fundamenta bem, então pode ser anulada por excesso de fundamentação.

E obviamente irão na fase do juízo de instrução repetir a tradicional argumentação de que o Juiz de Garantias fundamentou pouco ou foi excessivo ao autorizar a prova, e nas duas fases farão quase infinitos recursos e Habeas Corpus, Ou seja, nada muda, exceto que os argumentos serão feitos duas vezes e a um custo, no mínimo, dobrado.

Alguns alegam que outros países adotam este modelo, mas nenhum dos que falam isso visitou o país estrangeiro e estudou a estrutura. Na verdade, na Europa a carreira do Ministério Público também é tratada como Magistrado, logo deve-se ter muito cuidado com a tradução, pois Magistrado não é apenas Juiz na Europa. Este erro ocorreu quando praticamente adotaram o Código de Processo Penal da década de 40, o qual foi quase que uma cópia do código italiano. Lá na Itália os Juízes e Promotores, ambos Magistrados, são formados na mesma Escola e a carreira é uma só, podendo o Membro optar por trocar a cada momento, embora haja algumas restrições.

Por exemplo, o conhecido Magistrado Italiano Falcone não era Magistrado Judicial, mas do Ministério Público. Ou seja, isto é apenas um detalhe no número de confusões que ocorrem por se confundirem estruturas jurídicas nas traduções. O mesmo ocorrendo com os procuradores italianos Borsolino e Di Pietro, ambos tratados no Brasil como Juízes, mas eram Magistrados do Ministério Público.

Outro grande ponto é que até hoje não conseguimos no Brasil aplicar o princípio constitucional de partes, sistema acusatório que está na Constituição, ou seja, em que o Judiciário deve ser imparcial e inerte, logo cabe ao Ministério Público, na área penal, ser efetivamente o titular da ação penal, e não um apêndice. Porém, no cotidiano, continuamos aplicando o ´Código de Processo Penal de 1940 e com naturalidade prisões são decretadas sem pedido do Ministério Público, quebras de sigilo e buscas são expedidas pelo Judiciário sem pedido do autor, e até mesmo condenações com pedido de absolvição pelo próprio Ministério Público, ora se o próprio acusador está pleiteando absolvição é porque há uma dúvida e deveria prevalecer o “in dúbio pro reu” ou enviar o caso para a instância superior do Ministério Público avaliar, mas não pode haver uma decisão condenatória judicial surpresa. Seria o mesmo que o Judiciário assumir a ação de execução fiscal e começar a procurar bens e condenar sem que a Fazenda Pública tivesse que fazer algo processualmente.

Na verdade, o problema não são os ritos, mas os mitos. Vejamos o caso óbvio de que a arma de fogo, em si, não mata. Mas, sim as disputas pelo tráfico de drogas. Logo, discursos para se liberar uso de droga, mas sem aprofundar como ficaria o tráfico, pode até aumentar o número de assassinatos, pois proibir a venda, mas liberar o uso é algo muito complexo. Esse distanciamento da realidade por parte de órgãos de cúpula é um problema pouco refletido. Vejamos um caso real de que um órgão jurídico, muito bem-intencionado, mas equivocado, divulgou campanha para que se contasse até 10, isso para evitar os assassinatos por impulso (raiva). Ora, este órgão demonstrou que não sabe que a maioria dos homicídios (quase 80%) atualmente é por disputas e dívidas de drogas, ou seja, se a pretensa vítima deixar de correr e for contar até 10, certamente irá morrer.

Implantar juiz de garantias e crer quer irá melhorar algo, e ainda sem antes discutir e efetivar temas mais relevantes como processo penal acusatório (pois neste modelo não pode o Judiciário querer investigar ou comandar a investigação, acusar, prender de ofício, instruir, condenar, inclusive quando Ministério Público pede absolvição, e executar a pena, até quando é vítima), bem como obrigatoriedade da persecução penal, além da redução do número de audiências, maioria sem necessidade, apenas para repetir formalidades, e também ampliaras hipóteses legais de arquivamento, é fugir da realidade. Não temos excesso de presos, mas excesso de crimes e processos penais.

Na verdade, o modelo de juiz de garantias irá apenas garantir mais nulidades, mais prescrições, mais mercado de trabalho para defesa e mais impunidade.

*Andre Luis Alves de Melo, promotor em MG e Doutor pela PUC SP em Processo Penal Constitucional e associado do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica