Por Roberto Livianu*
23/02/2023 | 05h00
Infelizmente, cada verão tem deixado atrás de si no Brasil um rastro devastador ocasionado pelas chuvas, produzindo números estarrecedores de perdas de vidas humanas, tragando geladeiras, fogões, camas, roupas, comida, brinquedos, e as próprias casas inteiras das pessoas. Muitas vezes não sobra coisa alguma de pé.
Quem se vê premido pelas circunstâncias da vida a viver perto de morros está sujeito aos maiores riscos. Quanto maior for a proximidade, maior o grau de risco. Deslizamentos de terras, alagamentos, com quantidades pluviométricas que desafiam quaisquer previsões meteorológicas dão causa a tragédias cada vez mais retumbantes.
Mas, desde pelo menos as viagens de D. Pedro II, em seus respectivos registros, já se faziam referências aos riscos graves decorrentes das tempestades em diversas áreas. Em fevereiro de 2023, foi atingido o litoral norte do estado de São Paulo, especialmente a cidade de São Sebastião e região, com 48 vítimas fatais e 40 pessoas ainda desaparecidas, além de prejuízos incalculáveis.
As redes de solidariedade que se constroem imediatamente são fatos positivos, assim como foi positiva a imagem de mãos dadas do presidente da República, do governador do estado e do prefeito municipal unidos neste momento de tragédia das comunidades atingidas, pouco importando os partidos de cada qual, recuperando-se a liturgia da civilidade democrática, que lamentavelmente não prevaleceu durante o drama da pandemia.
Entretanto, não se pode deixar de encarar e analisar fatos graves subjacentes a esta tragédia e às anteriores. Existem políticas públicas adequadas em relação aos temas em questão no Brasil? Refiro-me às obras de prevenção e contenção dos deslizamentos de terras em decorrência das chuvas e outros desastres naturais. E à fiscalização do uso dos recursos públicos nestas obras. E ainda à regularização fundiária – pessoas morando irregularmente em áreas de risco.
Inexoravelmente ano após ano, as tragédias se repetem, mudando apenas o local geográfico, dependendo da incidência mais gravosa das chuvas. O Poder Executivo, nos três níveis, tem dever de administrar para prover o bem comum, devendo ser fiscalizado pela sociedade, pela imprensa, pelo Tribunal de Contas, pelo Ministério Público.
O descumprimento de seus deveres pode ensejar a tomada de medidas na Justiça e gerar preços políticos a serem pagos nas eleições. Deve-se prestar contas à sociedade dos investimentos feitos ano a ano para prevenir e evitar danos maiores, além da realocação das pessoas para outras áreas.
Mas não é só. Algumas outras cenas chamaram a atenção nas tragédias do litoral norte, que devastaram a região durante o carnaval. Turistas abastados contrataram transporte por helicóptero a valores exorbitantes, desprezando solenemente a tragédia vivida pela massa condenada à miséria, à morte e à exclusão, composta por homens e mulheres que prestam serviços invariavelmente aos próprios abastados mencionados.
A desigualdade social que reina entre nós gritou no litoral norte de São Paulo. Não é pecado ser rico, mas o é desprezar o drama do semelhante.
Dois jornalistas do Estadão, devidamente autorizados pelo condomínio Vila de Anoman em Maresias, faziam seu trabalho visando garantir acesso à informação, mostrando a realidade dos danos causados pelas chuvas.
Um grupo daquele condomínio que se dirigia à praia, indiferente à tragédia geral, interrompeu seu deslocamento para abordar os profissionais da imprensa, agredindo-os de forma violenta, insultando-os, chamando o jornal que representavam de comunista, esquerdista.
O repórter fotográfico Tiago Queiroz foi coagido a apagar fotos feitas em relação às ruas alagadas do condomínio e Renata Cafardo foi empurrada e sofreu tentativas de roubo de seu aparelho de telefonia celular.
Ou seja, o exercício da profissão que atende a um interesse maior da sociedade e do mundo, obstruído por maniqueísmo, reeditando a dinâmica da Inquisição medieval pela atitude de alguns, que, em estado delirante se consideram acima do bem e do mal, imaginando-se donos da verdade e dos próprios fatos. Devem ser punidos.
Em outra cena, o repórter Walace Lara, da TV Globo trouxe a público reportagem com tom de denúncia, sem conseguir conter as lágrimas, relatando que em comunidade de Topolândia, em São Sebastião, ao mesmo tempo em que voluntários ajudavam solidariamente a retirar lama das casas atingidas, comerciantes inescrupulosos chegavam a cobrar R$93,00 por uma garrafa média de água mineral, que é vendida em hipermercados por pouco mais de um real.
No caso citado, há expressa violação ao artigo 39, X do Código de Defesa do Consumidor, vez que a elevação de preços sem justa causa é considerada prática abusiva, sujeitando o infrator inclusive a penas criminais.
Certamente existe no Brasil liberdade de associação, de expressão e de mercado, todas garantidas constitucionalmente. Mas nenhum direito, nem mesmo as liberdades protegidas legalmente são infinitas. As pregações feitas nesta direção são mentirosas e desinformam.
Da mesma forma que um Deputado Federal ou Senador, que é respaldado pela imunidade parlamentar, não pode vir à tribuna e pregar morte aos negros, aos índios, às mulheres ou aos judeus, não se pode pregar a morte da democracia com o retorno do AI-5 como fez o Deputado Federal carioca Daniel Silveira. Por isto foi devidamente processado e condenado, por praticar crimes contra a ordem democrática.
Um comerciante não é obrigado a se submeter a tabelamento de preços pelo Estado, pois vivemos no sistema econômico liberal. Mas é natural que tudo deve passar pelo juízo da razoabilidade e cobrar noventa vezes o valor de mercado de uma garrafa de água numa situação dramática sob a ótica social, ante o desabastecimento, é inaceitável sob as perspectivas legal e moral, evidenciando-se que infelizmente os maus, os desonestos, tiram proveito das oportunidades, quaisquer que sejam elas, sem se compadecer com a desgraça alheia.
Priorização do enfrentamento da desigualdade social, cobrança cidadã da efetividade das políticas públicas preventivas em relação à prevenção de deslizamentos e tragédias causadas pelas chuvas e regularização fundiária; engajamento, conscientização e amadurecimento da sociedade, com respeito irrestrito aos ditames do Estado de Direito, com punição aos transgressores da lei – alguns dos ensinamentos da tragédia do carnaval de 2023 no litoral norte de São Paulo. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura…
*Roberto Livianu, procurador de Justiça no MPSP, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, palestrante, é idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)
Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica
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