RICARDO PRADO PIRES DE CAMPOS
27 JULHO 2023
As estatísticas não deixam dúvidas: o veículo mais perigoso para a vida e a saúde das pessoas, na atualidade, é a motocicleta.
Notícia divulgada em 05 de maio passado, pelo portal do trânsito dava conta que “os motociclistas foram os que mais perderam a vida nas vias e rodovias do Brasil. Foram 11.942 mortes nessa condição. Em seguida estão os ocupantes de automóveis (7.029) e os pedestres (5.349)”.[ii] Os dados publicados são os de 2021, último ano consolidado pelo Ministério da Saúde.
A motocicleta é um veículo que permite atingir altas velocidades, ao contrário de outros modelos (motonetas) que possuem seu deslocamento mais modesto.
Tive oportunidade de conhecer Madrid, a capital da Espanha, e lá não se vê o nosso modelo de motocicleta, mas apenas motonetas, infinitamente mais lentas, mas isso torna o trânsito naquela localidade, bastante mais amigável.
Claro, há uma diferença enorme no tamanho dos países. O Brasil é gigantesco, percorrer longos trajetos, com veículo lento, é desanimador. Longas distâncias exigem veículo rápido. Não é à toa que a indústria automobilística busca desenvolver veículos cada vez mais potentes.
Todavia, por outro lado, é preciso garantir a segurança dos motoristas, passageiros e pedestres, afinal, o que se quer é chegar no destino e não morrer pelo caminho, muito menos, passar o resto dos dias preso a uma cama ou a cadeira de rodas.
A motocicleta tem um apelo gigantesco e atinge diversos públicos. Embora os jovens sejam o grande público de entrada, não é incomum ver sessentões passeando com máquinas potentes. O preço mais em conta, nos modelos mais simples, é um grande convite para a população que começa sua vida ativa, ainda, com ganhos bastante limitados. Por outro lado, os modelos mais cobiçados são o objeto do desejo de quem já conseguiu se consolidar no mercado de trabalho.
Nos anos 2000, o Brasil tinha cerca de 3,5 milhões desses veículos cadastrados nos órgãos governamentais, atualmente, já passamos de 26 milhões (estatísticas do SENATRAN). Como se vê, a progressão foi fantástica.
As motocicletas já se constituem num dos principais meios de transporte do país.
O problema é que apesar de atingir altas velocidades, a motocicleta não conta com sistemas de segurança suficientes para proteger a vida do motorista ou da garupa numa eventual colisão. Enquanto o automóvel conta com para-choques de proteção, lataria, cinto de segurança e air-bags, o motociclista conta apenas com o capacete, o qual lhe concede alguma proteção para a cabeça, mas nada mais em relação ao restante do corpo.
Não é por outro motivo que os motoristas de motocicletas figuram entre as principais vítimas fatais em acidentes de trânsito.
A opção política que redundou na autorização para produção desse tipo de veículo no país trouxe como consequência um custo enorme em número de vidas e para o sistema de saúde. Em alguns países desenvolvidos, não se vê o número de motocicletas que encontramos no Brasil. Citei Madrid, mas também não notei número significativo de motocicletas em Lisboa, no Porto, em Paris, e nem em algumas cidades norte-americanas.
O problema não se circunscreve apenas as mortes, as quais já se constituem em número gigantesco de tragédias; há também as sequelas, muitas das quais permanentes e de grande relevância. Estamos gerando um número gigantesco de pessoas impossibilitadas para o trabalho e com restrições significativas para as atividades comuns do cotidiano.
“No Brasil, mais de 60% dos leitos hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS) são ocupados por vítimas envolvidas em colisões ou atropelamentos”[iii].
Relatório com dados do DPVAT mostra que em 10 anos (de 2009 a 2018) foram pagas quase 3,3 milhões de indenizações envolvendo veículos de duas rodas, desse total “quase 200 mil pessoas morreram, 2,5 milhões ficaram inválidas permanente”.[iv]
Se o país tivesse investido num modelo mais lento, como as motonetas espanholas, seguramente teríamos experimentado número bem menor nas estatísticas.
Levantamento de 2010, colocava o Brasil como o segundo país no ranking de vítimas por habitante em acidentes de trânsito envolvendo motocicletas[v].
É óbvio que a essa altura da história, dificilmente teremos uma mudança de rumo. As indústrias de motocicletas estão estabelecidas no país, geram empregos e impostos, e o público gosta do produto. Para quem possui maior preocupação com segurança, resta optar por um automóvel em seu lugar.
O próprio carro está se tornando cada vez mais vulnerável dado o elevado número de caminhões, ônibus e caminhonetas em circulação. Numa colisão com veículos maiores, o automóvel, por vezes, também se mostra incapaz de gerar a proteção desejada. No entanto, na circulação nas cidades, onde a velocidade média é significativamente menor que nas rodovias, o carro costuma proteger melhor seus ocupantes. A motocicleta sequer consegue conceder proteção nos acidentes urbanos.
As principais causas de acidentes de trânsito são a desatenção (com o celular ocupando lugar de destaque), o excesso de velocidade, o desrespeito à legislação de trânsito, as ultrapassagens em locais proibidos e a embriaguez ao volante, e elas se aplicam, com certeza, as estatísticas envolvendo motocicletas.
É obvio que os amantes dos veículos de duas rodas possuem uma série de argumentos em defesa dessa espécie de transporte, afinal, são mais econômicos, ocupam menos espaço, são mais fáceis de estacionar, geram menor dano ambiental, são mais rápidos e mais eficientes, pois, não ficam retidos em congestionamentos nas grandes cidades. E isso é pura verdade. Aliás, bastaria um argumento: as motocicletas são mais eficientes que os automóveis. A moto foi projetada para uma ou duas pessoas, o automóvel ocupa o espaço de quatro pessoas ou mais.
O trânsito contemporâneo atingiu alto grau de complexidade, pois, temos em circulação, na mesma via, veículos de porte e velocidade extremamente diversos: ônibus, caminhões, automóveis, caminhonetas, motocicletas, bicicletas; sem falar nos pedestres, animais e outros. Não é tarefa fácil conciliar todos esses deslocamentos em segurança.
A criação ou destinação de faixas próprias para motocicletas, como começa a ocorrer em avenidas em grandes centros, pode ajudar de forma significa na redução de eventos danosos envolvendo esses veículos, mas é importante a consciência dos motoristas sobre a vulnerabilidade dessa espécie de veículo, suas limitações e, também, a necessidade de redução da velocidade como forma de prevenção e redução de danos em acidentes.
Para que o leitor tenha uma ideia da diferença de resultados ocasionada pela velocidade, cabe registrar que em atropelamentos, se o veículo ofensor estiver numa velocidade de 50 km/h, em cada 5 casos 1 pessoa morre, ou seja, o índice de letalidade é de 20%. No entanto, se o veículo estiver trafegando numa velocidade de 80 km/h, em cada grupo de 5 casos 3 pessoas morrem, ou seja, o índice de letalidade passa a ser de 60%[vi]. Como se vê, é um aumento gigantesco.
Não foi sem motivos que a Prefeitura de São Paulo e muitas outras reduziram drasticamente a velocidade permitida em muitas vias públicas, em especial avenidas, nos últimos anos. Foi uma das medidas preconizadas no intuito de atingir o objetivo da ONU que era reduzir as mortes de trânsito pela metade na década 2011-2020.
O Brasil melhorou seus índices, mas, ainda, não atingiu o objetivo. Será preciso que os motoristas e as demais pessoas entendam melhor o funcionamento do trânsito, suas regras, mecanismos de proteção, e como agir para evitar acidentes, preservando vidas e a saúde de muita gente.
Um trânsito mais amigável será melhor para todos.
[i] Carlos Drummond de Andrade, José (poesia)
[ii] https://www.portaldotransito.com.br/noticias/fiscalizacao-e-legislacao/estatisticas/numero-de-mortes-por-acidentes-de-transito-volta-a-crescer-no-brasil/
[iii] https://g1.globo.com/especial-publicitario/inovacao-em-movimento/ccr/noticia/2019/05/22/brasil-reduz-mortes-no-transito-mas-nao-deve-bater-meta-da-onu.ghtml
[iv] https://www.portaldotransito.com.br/noticias/numeros-do-dpvat-mostram-fragilidade-dos-veiculos-de-duas-rodas-diante-de-acidentes (acesso 08/07/2021)
[v] http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/motos/saude/estudo-da-organizacao-mundial-da-saude-oms-sobre-mortes-por-acidentes-de-transito-em-178-paises-e-base-para-decada-de-acoes-para-seguranca.aspx
[vi] http://dapp.fgv.br/maio-amarelo-contextualizando-estatisticas-de-acidentes-de-transito-no-brasil/
*Ricardo Prado Pires de Campos é mestre em Direito Processual Penal, professor convidado da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, foi promotor e procurador de Justiça (1984-2019) e presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático. Coautor nas obras: 200 anos da Independência do Brasil (Quartier Latin) e Em defesa da Democracia (Dialética Editora)
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Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica
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