Por Bianca Stella Azevedo Barroso*
12/01/2023 | 05h00

O Estado como sociedade civil organizada, tem por fundamento, pressuposto e  razão de existir realizar ações voltadas a garantir a estabilidade, a paz, harmonia e o bem estar para as pessoas que estão sob seu território e âmbito de atuação.

Dentro deste contexto, trazido de forma bem superficial e simplista, mas ciente de sua complexidade, para o funcionamento do Estado como entidade abstrata e inanimada foi elaborado o maior conjunto de normas que servem de forma orientativa, disciplinar e de caráter obrigatório que é de onde emana regras de conduta para garantir sentimento de estabilidade, segurança e proteção nesta dada sociedade que, para nós brasileiros é a Constituição Federal.

Não é nenhuma novidade que os princípios fundamentais estão ancorados na valoração e dignidade do ser humano, e os objetivos essenciais da República brasileira está em estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária, reduzindo as desigualdades sociais e regionais.

A partir daqui, vale destacar que antes dos arranjos sociais e familiares vem a necessidade de o Estado, como instituição garantidora de direitos que é, considerar o ser humano e agir em sua defesa dentro do contexto social estruturado em que se encontra.

Não que o Estado seja assim o único responsável pela efetivação dos direitos fundamentais, mas tem a obrigação de dar exemplo.

E os profissionais que o formam, conquanto sejam pessoas inseridas nas mesmas circunstâncias socioculturais devem ter a noção e a responsabilidade de, em suas funções públicas, não reproduzir, praticar, ou permitir que se pratique desigualdades, discriminações e violências, mesmo quando tais práticas estejam normalizadas no consciente coletivo e culturalmente enraizadas.

Isto é um desafio e um exercício diário e constante.

Pois, a igualdade entre homens e mulheres perante a lei estabelecida na Constituição Federal, de caráter geral e abstrato, já se sabe que não é suficiente para garantir direitos humanos fundamentais e atuação antidiscriminatória.

De modo que precisamos sempre revisitar o conceito de igualdade material, para lembrar que ideal de justiça igualitária deve ser guiado pelo reconhecimento de identidades como gênero, raça, idade, etnia, origem e orientação sexual (PIOVESAN, 2008).

Responderemos sempre que necessário essas questões: Quem não se identifica como homem ou como mulher é igual perante a lei? Quando a mulher sustenta financeiramente seus filhos e precisa trabalhar ela está em condições de igualdade com os demais empregados homens? Quando a mulher parturiente é usuária do sistema público de saúde ela tem um tratamento digno e humanizado?

E mais: O que fazer quando o Estado-Juiz, cujo mister é aplicar a lei aos casos concretos, impõe a desigualdade justificado pela legalidade?

A primeira questão abordada diz respeito a identidade do ser humano. Alude a criação binária – homem e mulher, construída inicialmente como uma condição biológica para distinção do sexo das pessoas na sociedade e que tem evoluído para uma ideia interna sobre si mesmo e sobre a forma como quer se exteriorizar na vida privada e relações sociais. Para além dos fatores limitadores do sexo biológico que está naquele corpo humano, a identidade social está relacionada com a complexidade dos seres humanos, que na sua maneira de se realizar como pessoa neste mundo, sendo garantida a plena liberdade para ser sem estar aprisionado a conceitos, formas, padrões e estereótipos.

Isso tudo sem ofender a ninguém e sem importar em prejuízo ou diminuição à condição dos outros que seguem padrões diferentes.

Para aqueles que militam na área parece que estamos tratando de questões ultrapassadas, haja vista os tratados e convenções internacionais ratificados pelo país, a legislação atualizada, as ações afirmativas e claro, a nossa ordem constitucional.

Mas os casos são tão contemporâneos como corriqueiros. Pois, convivemos com decisões judiciais que indeferem medidas protetivas por não assimilarem o caráter gravoso de ameaças às mulheres e aos transsexuais, indeferimento liminar de denúncia ministerial por violência obstétrica ao fundamento de não existir no ordenamento formal a tipologia específica, bem como decisões e pareceres que não reconhecem a violência política de gênero pela interpretação de que os atos criminosos estão sob o manto protetor da imunidade parlamentar.

As manifestações carecem da necessária perspectiva de gênero: uma reconstrução na forma de olhar as pessoas com suas causas.

A fim de alcançar a conscientização vale o pequeno esforço de olhar para o passado e perceber como os grupos reconhecidamente vulneráveis foram formados, buscar o ponto de partida, ou seja, a partir de que momento essas pessoas ficaram para trás na história e passaram gerações e gerações de lutas para se aproximar de outros grupos mais valorizados.

No caso das mulheres, vários fatores sociais construídos culturalmente importaram para trazer uma espécie de perpetuidade da condição da mulher como o “segundo sexo”, parafraseando Simone de Beauvoir, porque o primeiro sexo, privilegiado, sempre foi o masculino.

Com escolaridade formal mais avançada, participação ativa na vida pública, poupados dos afazeres domésticos e atividades de cuidado, o homem sempre foi alçado ao posto do grande fazedor de obras e construtor da história.

Enquanto a participação das mulheres foi invisibilizada e de menos valor até os dias de hoje, sem justificativa verossímil e nenhum fundamento científico, apenas ostentando uma construção histórica perversa dentro da sociedade brasileira.

Sobre a perspectiva de gênero como instrumento para enfrentamento as desigualdades, a ONU – Mulheres em 2014 apresentou o modelo de protocolo latino-americano de investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero (feminicídios) trazendo essa forma de análise quanto aos crimes. O documento foi seguindo pelo Brasil que apresentou a Diretrizes Nacionais sobre Feminicídio, orientando maneiras de se considerar a questão social de gênero na investigação, processo e julgamento dos feminicídios.

Referidos documentos internacionais e nacional foram portas para a ampliação da perspectiva de gênero em outros âmbitos de atuação, no Poder Judiciário e nas instituições, merecendo destaque para os seguintes países: Chile com a apresentação da “Política Igualdad de Género y No Discriminación”; o México com o “Guía de Estándares Constitucionales y Convencionales para la investigación de Muertes Violentas de Mujeres por Razones de Género”; a Bolívia com o “Protocolo para Juzgar con Perspectiva de Género”; e na Argentina existe o “Protocolo para el abordaje de las violências de género em el sector público nacional”.

Seguindo esta tônica, o Conselho Nacional de Justiça, através de um grupo de trabalho coordenado pela Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás, então Conselheira, Dra. Ivana Farina Navarrete Pena, elaborou o documento intitulado Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em 2021, formalizando o compromisso do Poder Judiciário brasileiro em elaborar suas decisões observando o referido protocolo, sendo inclusive objeto da Recomendação CNJ nº 128/2022.

Por sua vez, a Comissão Permanente de Violência Doméstica – (COPEVID), vinculada ao Grupo Nacional de Direitos Humanos – GNDH, integrante do Conselho Nacional dos Procuradores Gerais de Justiça – CNPG (chefias dos Ministérios Públicos) editou o enunciado nº 59 que orienta o Ministério Público a guiar sua atuação com perspectiva de gênero em todas as áreas de atuação.

A população feminina, majoritária no Brasil, não pára de se emancipar socialmente, se destacar, se qualificar, assumir postos importantes com protagonismo, mas ainda precisa enfrentar a realidade de ser grupo vulnerável todos os dias, porque sua condição identitária feminina é motivo para tratamentos discriminatórios e de usurpação de direitos fundamentais.

Nestas condições, a perspectiva de gênero é necessária como política estatal afirmativa na promoção de igualdade substancial, porque antes dos arranjos familiares e sociais, padrões culturais e estereótipos vem o ser humano colado a sua identidade, e nada mudará se não mudarmos a forma de olhar sobre ele.

*Bianca Stella Azevedo Barroso, promotora de Justiça do MPPE. Coordenadora da Ouvidoria da Mulher do CNMP. Coordenadora do Núcleo de Apoio a Mulher do MPPE. Mestranda em Políticas Públicas UFPE. Diretora da AMPPE. Vice-presidente do MPD

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica