Ricardo Prado Pires de Campos 09 FEVEREIRO 2024 | 6min de leitura

Quando ingressei na Faculdade de Direito, faz muitos anos, enxerguei o curso como o estudo da evolução sociocultural da humanidade, através das diversas disciplinas era possível visualizar as formas como a sociedade ia se organizando e como isso gerava os institutos jurídicos: as variadas formas de família, de estado, de organizações sociais e de relações entre elas. É uma longa história de desenvolvimento em conjunto.

Essa história da construção do Direito, no entanto, é uma narrativa triste, cheia de episódios sangrentos, os quais vão mostrando, principalmente, como não deveria ser. Mais do que o encontro de uma fórmula ideal, o que se vai delineando são opções que não podem ser seguidas, são caminhos que levam ao desfiladeiro e, portanto, precisam ser evitados.

Do império romano ao período monárquico, passando pela idade média, o que se tornou evidente foi a necessidade de separar a política da religião. As cruzadas mostraram a conversão ser levada na ponta da espada; e os monarcas, enquanto se acreditou que eram ungidos por Deus, cometeram genocídios abomináveis. Não é por acaso que muitos buscam recuperar essa simbiose nefasta entre política e religião, visando obter o poder absoluto.

A queda da Monarquia, simbolizada pela Revolução francesa, trouxe inúmeras cabeças rolando ao som da guilhotina. Todavia, a partir daquele momento, não era mais Deus quem escolhia os governantes, mas o próprio povo. Esse povo, na prática, era representado por uma pequena parcela chamada de burguesia. Aquela parcela que possuía bens e fontes de renda.

A ideia de dividir o Poder entre diversos setores visa impedir às tiranias, mas também permite abrir espaços para acomodações de interesses dos poderosos.

Nesse período, começa a ganhar força a ideia de que as disputas pelo poder deveriam ser decididas pelo voto; e não mais pelas espadas. Embora esse ideal continue, por vezes, sendo contestado. Não apenas aqui, mas em muitos lugares do mundo.

O Direito acompanha todo esse desenrolar de acontecimentos sempre trabalhando para quem está no poder; afinal, serviu aos imperadores, aos monarcas, aos papas e a outros clérigos. O Direito canônico que o diga.

No mundo contemporâneo, no entanto, acreditamos que o Direito deve se sujeitar à Ética, para que possa ter legitimidade precisa defender os interesses de todos e não, apenas dos poderosos. No decorrer dos séculos, muitas doutrinas jurídicas foram criadas e desenvolvidas como forma de consolidar e preservar muito do que o conhecimento humano conseguiu produzir ao longo do caminho.

Todavia, entre a teoria e a prática, ainda, temos uma distância gigantesca.

Como permitimos, na atualidade, que um único personagem possa perdoar dívida de bilhões de uma empresa envolvida em gigantesco esquema de desvio de recursos públicos, notoriamente divulgado? Por mais supremo que qualquer um possa ser, decisões desse jaez deveriam ser coletivas, tomadas por muitas pessoas como forma de assegurar o interesse da coletividade. Nosso sistema de controle dos poderes, ainda, não consegue impor limites às decisões individuais de determinados agentes públicos.

O desgaste que o Estado brasileiro experimentou e permitiu a ocorrência de atos de contestação e até de atos criminosos, como os de 8 de janeiro de 2022, somente foram possíveis porque há um esgarçamento do tecido social e muito descrédito nas Instituições. Temos construído um discurso de confrontação, de luta, de deslegitimação do outro, que não busca a criação de consensos dentro da sociedade, mas de imposição do próprio pensamento. A lógica continua a ser a da dominação.

Aliás, os métodos para obtenção do voto, apesar de todos os avanços do Direito e das normas jurídicas, continuam sendo a manipulação pelo dinheiro, pelo abuso do poder, e pelas máquinas de fake news que inviabilizam o debate de melhor qualidade.

Vale tudo na busca pelo voto, ou na busca pelo poder, só não pode ser pego pela Justiça. Justiça? Qual delas: a imparcial da teoria jurídica ou aquela nomeada pelo governante da ocasião?

Enquanto a cúpula do Judiciário e do Ministério Público forem escolhidas pelos ocupantes do poder, não teremos Justiça imparcial; não, nos grandes temas nacionais.

O Direito desenvolveu ao longo dos séculos conhecimento significativo sobre formas de solução de conflitos, das mais variadas espécies e possui condições de resolvê-las. Todavia, ainda remanescem diversos entraves na administração pública que não têm permitido que possamos

Talvez, nossa administração pública padeça de uma melhor qualificação dos gestores, permitir que qualquer pessoa possa alcançar postos de relevo sem que tenha provado qualificação prévia parece um grande risco, mas ele tem sido permitido sob o argumento de que o povo é soberano e tem o direito de escolher quem quiser. Tivemos vários presidentes da República que não eram formados em administração, nem sequer haviam exercido o cargo de prefeito ou governador para demonstrarem que tinham condições de gerir o país. Uns foram melhor que outros, afinal, quem governa não é uma única pessoa, mas um grupo gigantesco formado por membros de diversos partidos políticos, e aí, existem muitos gestores qualificados e que participam desse trabalho.

Todavia, não é incomum, o líder político dispensar as considerações de sua assessoria qualificada e enveredar para caminhos incertos e desconhecidos, com prejuízo gigantesco à sociedade. É um risco enorme de nosso sistema eleitoral. Ainda acreditamos no Salvador da pátria, no indivíduo com superpoderes que pode solucionar todos os problemas da nação, mesmo que não tenha qualquer qualificação para isso. E não estou me referindo ao atual presidente, o qual se qualificou na escola da vida, e chegou a obter láurea de professor honoris causa em diversas universidades, numa demonstração de que a qualificação não é privilégio exclusivo das escolas e universidades; embora elas, em geral, consigam abreviar etapas e permitir que as pessoas atinjam patamares mais elevados do que conseguiriam individualmente. A história registra a existência de autodidatas espetaculares, mas não deixam de ser exceção à regra.

Personalizar as discussões a determinadas pessoas, nos impedem de estabelecer parâmetros que nos permitam evoluir. Estamos sempre mudando às regras para permitir que determinados líderes possam não as cumprir. Casuísmo em seguida de mais casuísmo (Reforma das Leis de improbidade e das estatais para ficar em apenas dois exemplos).

Não aprendemos a ter apreço pelo Direito enquanto fenômeno cultural, enquanto ciência que permite desenvolver formas mais evoluídas de convívio social. As pessoas costumam ver no direito apenas o aspecto do poder e do dinheiro. São essas as faces mais visíveis do fenômeno jurídico, o que, infelizmente, empobrece o debate, empobrece a sociedade, enquanto enriquece a alguns.

Quiçá, a evolução cultural do ser humano permita que as sociedades consigam valorizar o Direito como rumo a seguir, como um Norte seguro para a solução das disputas sociais; antes, porém, precisamos tornar nossos sistemas de contenção do poder mais eficientes, e separar o sistema de Justiça do sistema político.

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica