ANDRE LUIS ALVES DE MELO 13 JULHO 2023

O STJ discute um tema relevante, o qual pode ter repercussão em outros casos, e provocar uma revolução copernicana no arcaico processo penal brasileiro. Trata-se da discussão sobre o crime de contrabando de cigarros e o direito de o Ministério Público priorizar os casos mais relevantes.Nos debates foi usada a expressão “política criminal PROCESSUAL”, esta nomenclatura é uma revolução, e foi pouco percebida, embora muito mais importante que o caso concreto em julgamento.

Ou seja, o aspecto mais importante aqui não é o crime de contrabando de cigarros em si, sendo que este aspecto é até demonstrado em matéria do CONJUR no link https://www.conjur.com.br/2023-jun-15/stj-avalia-admitir-insignificancia-contrabando-cigarros.

O Brasil é praticamente o último país do mundo em que ainda prevalece o finalismo, o qual é baseado em uma crença de direito penal separado da política criminal. Nesse pensamento política criminal é feita apenas pelo Legislativo quando cria tipos penais e normas processuais, e pelo Executivo (leia-se através da Polícia que escolhe quais crimes irá combater). Após isso, o Judiciário e Ministério Público seriam obrigados a processar o que a Polícia escolher para combater. O que é um paradoxo, pois quem tem independência funcional é o Membro de Judiciário e do Ministério Público.

Em razão disso, e vendo o grande número de cifra obscura e prescrições, os demais países do mundo evoluíram para o Funcionalismo Penal, o qual resgata que Direito Penal e Política Criminal estão unidos em que cabe ao Judiciário e Ministério Público também elegerem prioridades para os processos em casos concretos mais relevantes.

No atual Código de Processo Penal recentemente até introduziram alguns termos funcionalistas como interesse de agir e justa causa processual penal, mas a visão finalista ainda não conseguiu perceber a dimensão destes termos, pois é a confirmação do rompimento da obrigatoriedade da persecução penal e reforço do início da discricionariedade da ação penal. Paradoxalmente órgãos de defesa de criminosos acusam o Ministério Público de suposto punitivismo, mas nada falam sobre a obrigatoriedade da ação penal, pois quanto mais processos, maior o mercado para atuação da defesa.

O aspecto mais importante neste julgamento do contrabando de cigarros ainda foi pouco notado e consiste no fato de que é o próprio Ministério Público que pede o arquivamento em casos de pequena repercussão, ou pequena quantidade de cigarros para que possa focar nos casos mais graves, mas não impede a atuação policial que pode encaminhar o caso para a via administrativa para sanções que muitas vezes são maiores e mais eficientes que a penal.

Esta discussão iniciou-se no Brasil muito atrasada, pois demais países da América Latina e da Europa já adotam esta triagem desde a década de 90, geralmente com critérios limitados em lei. Contudo, se não há limitação em lei, o que prevalece é que o Ministério Público tem liberdade ampla para estabelecer as suas prioridades, ou seja, a lei ordinária não cria a possibilidade de prioridades, ela apenas limita, o que é o contrário que se crê no Brasil.

A Constituição já assegura ao Ministério Público a autonomia, e estabelecer as suas prioridades é uma forma de autonomia, pois estará definindo onde serão aplicados os seus recursos financeiros (bem menores que os do Judiciário).

Em geral, o Ministério Público arquiva 30% dos Inquéritos por motivos como falta de provas, falta de tipicidade ou até mesmo prescrição e morte do réu, ainda é incomum estabelecer fundamentação em política criminal, embora o MPF já tenha enunciados permitindo o arquivamento quando a investigação seja de caso de pequena monta ou muito antigo e com pouca chance de êxito para ser apurado. No restante de 70% que se torna ação, em torno de 30% é feita a defesa por advogados particulares, e 40% por defensores públicos ou advogados dativos. Logo, o Ministério Público tem um gasto com processos penais superiores a outros segmentos.

Essa tendência de arquivamento vem aumentando, cita-se que em Minas Gerais em 2022 foram média 31 mil denúncias e 54 mil arquivamentos.

E nesta média de 30% de arquivados, e 70% de denunciados não se contabiliza os Inquéritos Policiais que a Polícia pede mais prazo para continuar investigando e o Ministério Público concede.

Em razão do mito da obrigatoriedade da persecução penal que também vigora apenas no Brasil para crimes sem violência, pois nos demais já admitem a discricionariedade fundamentada, inclusive para acordos penais, podendo arquivar, isso mesmo na Europa e América Latina, ou seja, no Brasil prevalece o equívoco de que acreditar que ação penal (persecução penal) é apenas processar e não realizar acordos penais. Então, inicia-se um círculo vicioso por achar que “obrigatoriedade do acordo penal” seria uma forma de discricionariedade, mas como geral acredita-se que o acordo é obrigatório, a obrigatoriedade continua. Nos demais países tanto a ação penal, como o acordo penal, são facultativos, e podendo o Ministério Público podendo optar por arquivar fundamentadamente por política criminal, como prioridade.

No entanto, o que é política pública criminal processual? É o ato de estabelecer prioridades e assumir responsabilidades. Não é uma atuação automatizada.

Como Juízes e Promotores são os únicos cargos que seus ocupantes são impedidos de concorrer a cargos eletivos, sob pena de perda dos cargos, então é porque exercem atividade de política no exercício de suas funções. Caso contrário, seriam sub-cidadãos por não poderem concorrer a cargos eletivos sem uma justificativa.

Na Europa e na América Latina, exceto no Brasil, o princípio da obrigatoriedade da ação penal já foi flexibilizado. E a arcaica doutrina do finalismo penal (que não é apenas sobre ação penal, como se leciona em livros no Brasil) já foi substituída pelo funcionalismo penal, ambos de origem alemã, mas o primeiro começou a ser abandonado na Europa na década de 80.

Pelo finalismo penal basta que ocorra uma ação formalmente típica para que se adeque ao tipo penal e gere um processo penal. Uma ilha da fantasia, pois acredita-se que todo fato criminal será apurado. No entanto, conforme estatísticas, menos de 10% das ocorrências policiais tornam-se Inquéritos Policiais. Ou seja, a maioria fica no limbo, uma cifra obscura. E nesse dado não se analisa os dados de vítimas que nem o crime, o que não desperta o interesse no meio jurídico, mas o IBGE pesquisou, e constatou em 2022 que menos de 50% das vítimas de furtos e roubos comunicam o crime à Polícia, conforme dados no endereço eletrônico a seguir: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/seguranca/audio/2022-12/pesquisa-do-ibge-aponta-que-roubos-e-furtos-sao-subnotificados-no-pais

Outro ponto, é que há mais crimes de estelionato do que furtos, mas para o primeiro mesmo que de alto valor, em regra, tem que ter representação da vítima, e para o segundo ainda que de pequena monta não precisa de representação da vítima. Porém, no meio judicial há muito mais processos por furto do que por estelionato. Ocorre que crimes de estelionato geralmente é cometido por pessoas mais inteligentes e mais difícil de ser investigado e processado do que crimes de furtos.

Esta questão do mito da obrigatoriedade da ação penal foi objeto de minha pesquisa para Tese de Doutorado na PUC SP, e onde pesquisando vários países constatei que temos a pior legislação processual penal no mundo civilizado, por ser muito burocratizada e frouxa, o que gera a impunidade e aumenta o número de crimes, e paradoxalmente o número de presos, mas também aumenta o número de processos penais, geralmente acabando em prescrição, mas a defesa recebe para atuar. Já órgãos como Ministério Público e Judiciário mesmo em arquivamentos já tem a sua estrutura assegurada, logo não precisam de processos formais para que atuem, pois o trabalho já inicia na fase anterior.

Na verdade, a pergunta correta não é se temos excesso de presos, mas sim excesso de processos penais e excesso de crimes. Temos hoje uma média de 10 milhões de processos criminais ativos, e apenas 700 mil presos, sendo que destes 200 mil são “presos fake”, pois cumprem prisão domiciliar no conforto de suas casas e sem fiscalização efetiva, pois há poucas tornozeleiras.

É comum alegar que temos a 6ª população prisional do mundo. Ora, se temos a 6ª população do mundo, então é razoável que a população prisional fique próxima disso. Na verdade, o número de presos deve ser comparado é em relação à população, ou seja, por 100 mil habitantes. E nesse aspecto ficamos em 30º lugar, portanto não há punitivismo, e sim, excesso de crimes (e não de presos) se compararmos o número de ocorrências policiais no mundo. E ainda que temos na legislação penal mais de 1.200 tipos de crimes previstos. O discurso ideológico de ressocialização aumentou o número de crimes e presos nos últimos anos. A ressocialização não é algo que a legislação da maioria dos países prevê como objetivo do direito penal, mas sim como direito e vontade do réu. E não há nenhum indicativo de que reduza crimes, pois o ato de cometer crimes é uma vontade do criminoso e não uma imposição social, como preceitua a corrente ideológica que vê o criminoso como vítima da sociedade e que o Direito Penal deve salvar almas na Terra, pois são materialistas…

Verifica-se objetivo de alguns órgãos jurídicos de criar uma falsa sensação de caos prisional, sendo que na verdade o problema é caos de segurança pública em razão de decisões judiciais garantistas da impunidade do criminoso em total desprezo pelas vítimas com base em firulas processuais.

Mas, o importante é que ao se discutir “política processual penal” permite ao sistema jurídico escolher as prioridades para ajuizamento e processamento das ações penais relativas aos casos mais graves, racionalizando a pauta de audiências e o uso de recurso públicos, evitando o colapso de audiências e aumento de prescrições.Nesse sentido, a Polícia combate os crimes e o Ministério Público e Judiciário estabelecem fundamentadamente, e com controle das instâncias superiores, quais casos serão priorizados por justa causa com base na gravidade local e temporal, pois crimes podem ser mais graves em uma comunidade do que em outra, ou em alguns períodos. Tudo isso é um dos aspectos mais importantes do funcionalismo penal que propõe Direito Penal e Política Criminal juntos na fase processual, o que é ignorado e pouco compreendido pelos Finalistas, os quais ficam estagnados na fase da insignificância do crime (fase inicial do funcionalismo), em vez de evoluírem para insignificância processual, ou seja, é crime, mas naquele momento não será processado por políticas processuais penais, por falta de justa causa e interesse de agir, arquivando-se provisoriamente, e até podendo ser desarquivado como no caso de habitualidade do autor da ação criminosa ou melhorias na pauta de audiências.

Não faz sentido focarmos em crimes cometidos com menor inteligência alegando que não tem tempo e estrutura para combater os crimes mais complexos.

Em suma, Funcionalismo penal não é falência do Estado, pois é ingenuidade acreditar que algum Estado no mundo consiga processar com eficiência todos os delitos, e ignorar o alto número de prescrições e cifras ocultas. Política Pública processual penal é estabelecer triagem na fase processual, não na fase policial, mas na fase ministerial e judicial para o ajuizamento de ações judiciais, priorizando os casos graves, e não apenas por ser réu preso, pois geralmente no Brasil há apenas prisões em flagrante e por crimes cometidos de forma menos inteligente. Ou seja, teremos menos processos, menos prisões, mas será uma atuação mais eficiente que poderá combater os criminosos mais perigosos, ou seja, tiros processuais de escole não de metralhadora processual sem mira alguma como é atualmente, ou que apenas foque no que foi preso em flagrante, mas permitir a melhoria da investigação.

*Andre Luis Alves de Melo, promotor de Justiça em MG, doutor em Processo Penal Constitucional pela PUC SP e associado do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático

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Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica