Por Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser*
02/02/2023 | 03h30
O impacto do uso de agrotóxicos sobre a saúde humana é um problema que tem merecido atenção da comunidade científica em todo o mundo, sobretudo nos países em desenvolvimento. A avaliação do impacto sobre a saúde humana implica o conhecimento e a visualização da importância e magnitude relativa de cada uma das vias de contaminação.
Corroborando com o tema, Flávia Londres[1] ressalta os impactos à saúde e ao meio ambiente relacionados à pulverização aérea de agrotóxicos. Relata que lavouras e/ou a saúde de pessoas são afetadas pela deriva de agrotóxico de propriedades vizinhas, até mesmo onde a prática é proibida. Ressalta, ainda, que a saúde de trabalhadores é afetada por falta de uso de equipamentos de segurança, mesmo que estudos tenham demonstrado que estes não protegem totalmente os seres humanos.
Os riscos de intoxicação humana acontecem não somente através do trabalho na agricultura. Em certas áreas agrícolas, o simples fato de “respirar” pode se tornar uma fonte de exposição, tendo em vista que, durante a atividade de pulverização, existe a dispersão destes produtos no ambiente.
Além dos danos à saúde, deve-se mencionar que as pragas agrícolas possuem capacidade de desenvolver resistência aos agrotóxicos aplicados, que, dessa forma, perdem gradativamente sua eficácia, levando os agricultores a aumentar as doses aplicadas e/ou recorrer a novos produtos. O desequilíbrio ambiental ocasionado por esses produtos também leva ao surgimento de novas pragas e, assim, insetos ou plantas que antes não provocavam danos às lavouras passam a se comportar como invasoras e a atacar as plantações.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)[2] propõe como ação concreta para o enfrentamento da questão do agrotóxico na qualidade de problema de saúde pública, a proibição da pulverização aérea de agrotóxicos, tendo em vista a grande e acelerada expansão dessa forma de aplicação de venenos, especialmente em áreas de monocultivos, expondo territórios e populações a doses cada vez maiores de contaminantes com produtos tóxicos, o que gera agravos à saúde humana e aos ecossistemas.
O Ministério da Saúde manifestou-se favorável à proposta de proibição da pulverização aérea no Brasil, como relatado na resposta à consulta sobre o PLS nº 541/2015, onde ressalta que, no que se refere à pulverização aérea de agrotóxicos, é notória a preocupação do setor saúde com os seus potenciais impactos à saúde humana.
Consta da DIRECTIVE 2009/128/EC13, da Comunidade Europeia, em seu artigo 9º, que os Estados-Membros deverão assegurar a proibição da pulverização aérea. A mesma só pode ser autorizada em casos especiais desde que sejam satisfeitas, dentre outras, as seguintes condições: a) Não devem existir alternativas viáveis ou deve haver vantagens claras em termos de menores efeitos na saúde humana e no ambiente, em comparação com a aplicação terrestre de agrotóxicos; b) Os agrotóxicos utilizados devem ser explicitamente aprovados para pulverização aérea pelos Estados-Membros após avaliação de risco específica relativa à pulverização aérea; c) Se a área a ser pulverizada estiver em estreita proximidade com áreas abertas, devem ser garantidas medidas de gestão de riscos específicos para assegurar que não haverá efeitos adversos sobre a saúde da população; d)A área a ser pulverizada não deve estar em estreita proximidade a áreas residenciais; e) A partir de 2013, a aeronave deve ser equipada com acessórios que constituam a melhor tecnologia disponível para reduzir a dispersão da pulverização; f)Os Estados-Membros devem designar as autoridades competentes para estabelecer as condições específicas em que as pulverizações aéreas podem ser realizadas e requisitos especiais de aplicação, incluindo condições atmosféricas, em que pulverizações aéreas podem ser permitidas; g) Na autorização, as autoridades competentes devem especificar as medidas necessárias para alertar os moradores e transeuntes em tempo e para proteger o ambiente nas proximidades da zona pulverizada.
Contribuindo para a avaliação e redução do risco de exposição aos agrotóxicos, a Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE), coordenou em 2012 uma pesquisa que contou com a distribuição de um questionário, desenvolvido pelo Reino Unido, sobre a abordagem de gestão e mitigação de operações realizadas com a utilização de agrotóxicos em áreas próximas a residências. Foram recebidas respostas de 16 países: Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Alemanha, Irlanda, Japão, México, Países Baixos, Noruega, Nova Zelândia, Eslovênia, Suécia, Suíça, Reino Unido e nos EUA. A maior parte desses países possui normas restritivas à aplicação de agrotóxicos nas proximidades de residências, incluindo medidas de gestão de risco. Na Holanda e na Eslovênia a pulverização aérea de agrotóxicos foi proibida. Em 2014, a França também baniu a pulverização aérea de agrotóxicos para algumas culturas e pretendeu fazê-lo completamente até 2020. Nas Filipinas, foi proibida apenas na cultura de banana, após as evidências da ocorrência de intoxicações de trabalhadores e populações vizinhas[3].
No Brasil, a Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1.989, estabelece que os agrotóxicos somente podem ser utilizados no país se forem registrados em órgão federal competente, de acordo com as diretrizes e exigências dos órgãos responsáveis pelos setores da saúde, do meio ambiente e da agricultura.
O registro para novos produtos agrotóxicos só será concedido se a sua ação tóxica sobre o ser humano e o meio ambiente for comprovadamente igual ou menor do que a daqueles já registrados para o mesmo fim. É proibido o registro de agrotóxicos, seus componentes e afins, dentre outras hipóteses, para os quais não haja antídoto ou tratamento eficaz no Brasil; que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, de acordo com os resultados atualizados de experiências da comunidade científica; que provoquem distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor, de acordo com procedimentos e experiências atualizadas na comunidade científica; e cujas características causem danos ao meio ambiente. O Decreto nº 4.074, de 04 de janeiro de 2002, que regulamenta a Lei, estabelece as competências para os três órgãos envolvidos no registro: Anvisa, vinculada ao Ministério da Saúde; Ibama, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente; e Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A ANVISA tem atribuição de avaliar e classificar toxicologicamente os agrotóxicos. Os resultados dos estudos toxicológicos são utilizados para calcular o parâmetro de segurança que consiste na Ingestão Diária Aceitável (IDA) de cada ingrediente ativo. Não há dúvidas que as normas de defesa do Consumidor impõem ao produtor, ao mercado varejista e aos órgãos públicos fiscalizadores, o dever legal de evitar que a saúde e segurança do consumidor sejam colocadas em risco, buscando prevenir a ocorrência efetiva do dano. É inegável que a presença de defensivos químicos em quantidade excessiva nos alimentos, que são de consumo diário e obrigatório de toda a população, expõe os consumidores a riscos à sua saúde e integridade.
A Resolução RDC nº 04, de 18 de janeiro de 2012, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária dispõe sobre os critérios para a realização de estudos de resíduos de agrotóxicos para fins de registro de agrotóxicos no Brasil. Na legislação administrativa sanitária, inserida na Portaria de Consolidação nº 02, de 28 de setembro de 2017, há preocupação com o tema dos agrotóxicos em diversos aspectos: a. Política Nacional de Alimentação e Nutrição (Anexo 1 do Anexo III da Portaria de Consolidação), onde se prevê sobre o controle e a regulação de alimentos (item 4.7); b. Política Nacional de redução de morbinatalidade por acidentes e violências (Anexo 1 do anexo VII), que considera os elevados índices de intoxicação por ingestão de agrotóxicos, exigindo-se a criação e a capacitação de unidades de emergências para o atendimento de intoxicações, enfatizando-se aquelas decorrentes de agrotóxicos, com apoio toxicológico de emergência e de referência; c. Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer (Anexo IX), que determina o enfrentamento dos impactos dos agrotóxicos na saúde humana e no ambiente, por meio de práticas de promoção da saúde com caráter preventivo e sustentável e também o fomento à eliminação ou redução da exposição aos agentes cancerígenos relacionados ao trabalho e ao ambiente, tais como benzeno, agrotóxicos, sílica, amianto, formaldeído e radiação; d. Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Anexo XV), que prevê o estabelecimento da notificação compulsória e investigação obrigatória em todo território nacional dos acidentes de trabalho graves e com óbito e das intoxicações por agrotóxicos, considerando critérios de magnitude e gravidade; e. Política Nacional de Saúde integral das populações do campo, da floresta e das águas (Anexo XX), que prevê a meta de reduzir os acidentes e agravos relacionados aos processos de trabalho no campo e na floresta, particularmente o adoecimento decorrente do uso de agrotóxicos e mercúrio, o advindo do risco ergonômico do trabalho no campo e na floresta e da exposição contínua aos raios ultravioleta e também prevê a promoção do fortalecimento e a ampliação do sistema público de vigilância em saúde, do monitoramento e da avaliação tecnológica sobre os agravos à saúde decorrentes do uso de agrotóxicos e transgênicos.
A pulverização aérea de agrotóxicos é permitida, desde que observadas as condições exatas constantes da bula (condições de temperatura exterior, umidade do ar e velocidade do vento). Na prática, é muito difícil reunir todas essas condições, especialmente a velocidade do vento, pois são comuns rajadas que acabam por dispersar o agrotóxico além da área sobre a qual deveria ser aplicado – esse fenômeno é chamado de deriva. A fiscalização das aeronaves é de competência da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC. As empresas devem manter registro em aludida agência e no MAPA. Já a fiscalização da aplicação é da Coordenadoria de Defesa Agropecuária. Todos os registros da aplicação aérea devem constar de relatório operacional, que é subscrito pelo piloto, pelo técnico agropecuário executor, pelo proprietário da área e pelo engenheiro agrônomo responsável técnico da empresa, devendo ficar arquivado na empresa pelo prazo mínimo de 2 anos.
A Instrução Normativa nº 02/08, do MAPA, e o Regulamento Brasileiro da Aviação Civil nº 137 disciplinam a atividade de aviação agrícola.
Essas normas estabelecem algumas restrições para a aplicação de agrotóxicos por pulverização aérea: a) Não é permitida a aplicação aérea de agrotóxicos em áreas situadas a uma distância mínima de: a) quinhentos metros de povoações, cidades, vilas, bairros, de mananciais de captação de água para abastecimento de população; b) duzentos e cinquenta metros de mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais; c) No caso da aplicação aérea de fertilizantes e sementes, em áreas situadas à distância inferior a quinhentos metros de moradias, o aplicador fica obrigado a comunicar previamente aos moradores da área; d) Não é permitida a aplicação aérea de fertilizantes e sementes, em mistura com agrotóxicos, em áreas situadas nas distâncias previstas acima; e)As aeronaves agrícolas, que contenham produtos químicos, ficam proibidas de sobrevoar as áreas povoadas, moradias e os agrupamentos humanos, ressalvados os casos de controle de vetores, observadas as normas legais pertinentes; f) Não é possível a pulverização aérea no período noturno (30 minutos após o por do sol e 30 minutos antes do nascer do sol); g) Em se tratando de espaço aéreo controlado, a operação deve ser autorizada pelo controle do tráfego aéreo com jurisdição sobre a área; em se tratando de espaço aéreo não controlado, há condições meteorológicas específicas para permitir a operação.
O Projeto de Lei 4302/2019 (apensado ao PL-1014/2015) em trâmite na Câmara dos Deputados, proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos, em todo o território brasileiro. Contudo, enquanto não se verifica a aprovação desse projeto, deve-se observar apenas o cumprimento da legislação, quanto às restrições para a pulverização aérea de defensivos agrícolas.
Por fim, é importante lembrar, ainda, que a pulverização aérea não é o único modo de aplicação de defensivos na plantação e as restrições para o seu emprego não inviabilizam a atividade agrícola, nem trazem prejuízos à economia local.
[1]Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. Rio de Janeiro: AS-PTA – Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, 2011.
[2]Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impacto/s dos agrotóxicos na saúde / Organização de Fernando Ferreira Carneiro, Lia Giraldo da Silva Augusto, Raquel Maria Rigotto, Karen Friedrich e André Campos Búrigo. – Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015.
[3]OECD. Organisation for Economic Co-operation and Development. Report of an OECD Survey on Risk Management/Mitigation Approaches and Options Related to Agricultural Pesticide use near Residential Areas. Series on Pesticides, No.78. Paris, 22-Jul-2014.
*Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser, procuradora de Justiça / Ministério Público do Estado de São Paulo
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)
Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica
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