Por Andre Luis Alves de Melo*
29/12/2022 | 03h30

O STF discute atualmente a constitucionalidade da tramitação direta de Inquéritos Policiais entre Polícia e Ministério Público no Recurso Extraordinário 660.814.

Em apertada síntese a discussão gira em torno de definir se é uma questão procedimental ou processual, e neste caso, apenas lei federal poderia permitir tal possibilidade.

Na prática tal sistema funciona da seguinte forma: o Delegado instaura o Inquérito Policial e vencido o prazo legal remete ao Judiciário, o qual distribui o Inquérito para alguma Vara e depois envia ao Ministério Público, e a partir daí, o Inquérito Policial passa a tramitar diretamente entre Ministério Público e Delegacia, apenas sendo remetido ao Judiciário se tiver necessidade de alguma medida como quebra de sigilo ou outra cautelar.

Tal iniciativa reduz o prazo de tramitação dos Inquéritos e diminui a possibilidade de prescrição. Anteriormente, era comum Inquéritos demorarem quase um ano apenas para se obter um despacho judicial como “remeta-se os autos ao Ministério Público” ou “devolvam os autos à Depol para cumprir as diligências pleiteadas pelo Ministério Público”.

Com a devida vênia, mas alegar que há controle judicial nesta fase é desconhecer a realidade da tramitação processual penal. Outrossim, não pode o Juiz arvorar-se na função de órgão de acusação, ao menos em tese não deveria em um país em que supostamente vigora o Estado Democrático de Direito, e também não pode impedir provas que a acusação entende necessária e que não dependem de quebra de sigilo.

Lado outro, se entender que a tramitação de Inquérito Policial é norma processual, então não poderia o STF regular a tramitação de Inquéritos da competência funcional no STF por meio de Resoluções internas, ou seja, apenas a Lei Federal poderia minuciar, o que contradiz o atual entendimento do STF.

E ainda, se o Inquérito Policial for considerado como instrumento efetivamente sob controle judicial não precisa então mais reinquirir em juízo testemunhas que já foram ouvidas na fase policial. Afinal, são documentos policiais com fé pública e que valem como prova documental. Portanto, caberia à defesa questionar o teor dos documentos e pedir para reinquirir em juízo. Mas, a prática atual é anacrônica e segue no sentido de que o Ministério Público deve reproduzir em juízo o que já foi feito na fase policial, o que é paradoxal, pois a pauta de audiências é marcada para anos depois em razão do excessivo número de audiências de instrução.

Em regra, a tramitação direta dos Inquéritos Policiais pode ser acompanhada pelos sites do Ministério Público e até do Judiciário, menos pelos sites das polícias. A rigor, esta questão de tramitação direta não gera problema algum relevante e nem há provas de eventuais abusos, como alegado abstratamente por determinada autoridade, inclusive não apontou nenhum caso concreto.

Na verdade, o sistema criminal brasileiro tem problemas muito graves e relevantes que o STF poderia avaliar como prescrição mais de 50% dos casos.  Além do fato de que tramitam aproximadamente 10 milhões de processos judiciais no Brasil, além de TCOs e Inquéritos Policiais, sendo há estimativa de que menos de 20% das ocorrências policiais (BOs) são transformados em IPs e TCOs, sendo que o restante desaparece e não há controle sobre estes dados, pois alega-se autonomia dos Estados.

Nesse sistema caótico acusam o Ministério Público de punitivismo, mas não se discute o mito da obrigatoriedade da ação penal. Único país no mundo em que aplica este mito sem reflexões, e confundem disponibilidade da ação penal com a alternativa de possibilidade de acordos penais. No entanto, nos demais países nem mesmo acordos penais são obrigatórios mais, quando a ação penal for desproporcional, tendo a discricionariedade prevalecendo em vez da obrigatoriedade. Até mesmo na Itália em que está previsto tal condição de obrigatoriedade da ação penal na Constituição Federal, estão flexibilizando, e não é apenas a ação penal que flexibilizaram, mas a persecução penal (englobando ação penal e acordos).

Na Itália, os carabineiros (similar à Polícia Militar no Brasil) encaminha as ocorrências policiais para o Ministério Público, o qual decide quais os casos são relevantes para remeter para a Polícia Civil lá investigar. No Brasil, a PM envia os BOs para a Polícia Civil que decide o que irá investigar e remeter ao Judiciário, sem publicar nada no site ou no diário oficial.

Como no Brasil, o Juiz e o Promotor são impedidos de exercerem atividade política, em tese, porque são agentes políticos no exercício da função e podem eleger prioridades de política processual, como sustenta o funcionalismo penal. Logo, diferem dos demais servidores públicos que atuam como agentes burocráticos. Portanto, não deveria a Polícia Civil exercer esta discricionariedade seletiva procedimental e notadamente sem efetivo controle externo ou com publicidade das decisões no portal ou no diário oficial.

Por outro lado, alega-se que temos excesso de presos, mas englobam os presos domiciliares para inflacionar os números e chegarmos à ficção de 700 mil presos, mas nos presídios seriam apenas 500 mil, porém temos 10 milhões de processos penais ativos, além milhões de ocorrências policiais que desaparecem no sistema e nem chegam a se tornar Inquérito ou TCO. Isto é temos menos de 5% de presos em relação ao número de processos criminais. E se dividirmos o número de presos pela população de 100.000 mil habitantes somos o 35º em população prisional, embora sejamos o 6º em população mundial. Em suma, temos é excesso de crimes e não excesso de presos.

No processo penal no Brasil não se discute inocência, mas apenas busca-se nulidade processual ou prescrição, uma distorção da finalidade processual.

Conforme pesquisa com dados estatísticos recentes, de 2017, sobre a atuação criminal e o alto número de prescrições, em trabalho realizado por Aylton Cardoso Vasconcellos no TJRJ, Juiz de Direito, observa-se que mais de 50% dos processos são atingidos pela prescrição, uma espécie de pandemia processual, o que está disponível neste link.

Exame analítico das informações estatísticas da Justiça Criminal de primeiro grau de jurisdição do Estado do Rio de Janeiro

Relatório analítico de sentenças criminais no RJ entre 2005 e 2015

a) 51,87 % – sentenças de extinção de punibilidade (em regra, prescrição)

b) 31,61 % – sentenças homologando arquivamento de inquérito

c) 1,25 % – rejeição de denúncia

d) 9, 67 % – sentenças condenatórias

e) 5,63 % – sentenças absolutórias

Obs. 94,64 % dos processos em 2015 eram com réus soltos

O Ministério Público realiza um controle externo de ficção, pois não tem acesso on line como usuário externo aos Inquéritos Policiais e TCOs nas Delegacias, e deve requisitar informações por escrito sobre cada um. Além disso, as Policiais Civis criaram administrativamente uma espécie de procedimento de Diligências Preliminares para investigar, e como não é Inquérito, nem TCO, não precisam remeter ao Judiciário e ao Ministério Público, e nem quando arquivam publicam em algum diário oficial ou internet. A estimativa é que as Diligências Preliminares sejam o dobro de IPs e TCOs, sendo que nem no relatório semestral remetido ao CNMP exige-se lançar este dado, ou seja, há um buraco negro de seletividade sobre o que será instaurado pela Polícia Civil e remetido ao Judiciário.

O IBGE tem feito levantamentos que demonstram que há impunidade no Brasil e não punitivismo, mas isto não tem interessado ao meio jurídico, pois desmantela mitos que interessam a determinados grupos. Dentro destes dados destacamos a constatação de que 18 milhões de pessoas foram vítimas de roubo em 2021 (sem computar furtos e estelionato, golpes) e que 58% das pessoas vítimas de crimes não comunicam à Polícia, conforme link.

Vejamos a desproporção entre vítimas de crimes e número de presos, mas o número de vítimas não parece interessar ao meio jurídico.

Apenas para reforçar esta dicotomia entre ficção penal e realidade, é fato notório que há mais golpes, estelionatos do que furtos, mas no cotidiano penal há mais processos por furtos, pois cometidos por pessoas menos inteligentes, em regra, e ser crime mais fácil de apurar.

Por fim, com problemas graves na área penal o STF segue discutindo a tramitação direta de Inquéritos Policiais entre Ministério Público e Polícia, enquanto poucos delitos são apurados quando fora do flagrante, e nos que são apurados mais de 50% prescreve.

*Andre Luis Alves de Melo, promotor de Justiça em MG. Doutor em Direito Processual Constitucional pela PUC-SP. Associado do Movimento do Ministério Público Democrático

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica