20/12/2016
Conjur
Nova portaria interministerial pró-corrupção usurpa o Poder Legislativo
19 de dezembro de 2016
Por Roberto Livianu e Júlio Marcelo de Oliveira
Vivemos um 2016 dificílimo sob o prisma econômico, social, político e jurídico. Mas a verdade é que grandes surpresas estavam reservadas para o período seguinte ao da celebração do aniversário de 127 anos da República.
O primeiro episódio: a tentativa de aprovar anistia ampla geral e irrestrita nos planos civil, administrativo, político e criminal para todos os fatos que tivessem por objeto dinheiro não contabilizado em campanhas políticas (“Caixa 2”), o que livraria da responsabilização muitos acusados inclusive pela operação “lava jato”.
Destaque-se que se pretendeu aprovar a tal anistia em votação simbólica, ou seja, secreta, a despeito do princípio constitucional da publicidade e da imprescindível moralidade administrativa. Dos quase 40 partidos políticos, só o PPS, PHS, PSOL e REDE quiseram o voto aberto.
Na semana seguinte, logo após a tragédia com o avião com a equipe da Chapecoense, que tirou a vida de 71 pessoas, levando à decretação de luto oficial por três dias, na mesma noite do dia 29 e madrugada adentro, a Câmara dos Deputados desfigurou o já depurado relatório de Onyx Lorenzoni sobre as 10 medidas contra a corrupção, deixando intactas apenas 2 das 10.
Além disso, com nítido objetivo de retaliação, incluiu-se um destaque com tipos penais abertos, com feição nazista, criminalizando juízes e promotores por trabalharem. Tão absurda a proposta que foi objeto de coerente repúdio por parte do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), OAB e Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Registre-se que o proponente do destaque na Câmara é réu em ação de improbidade no Maranhão.
A ideia era que o Senado aprovasse o projeto já no dia 30 em caráter de urgência e o presidente sancionasse no mesmo dia. Bom lembrar que o presidente do Senado é réu em processo criminal acusado de peculato e investigado em mais 11 casos penais.
Como se não bastasse, em sede de liminar, o STF determinou o afastamento do Presidente do Senado, que simplesmente não cumpriu a decisão. Surpreendentemente, o pleno do STF, por 6×3, o manteve na Presidência, onde tentou aprovar o PL 280 – abuso de autoridade – com estilo semelhante ao destaque apresentado na Câmara para criminalização de juízes e membro do MP, não logrando êxito.
Como se não bastasse, na última quinta, por portaria interministerial da Advocacia-Geral da União e Ministério da Transparência, usurpou-se o Poder Legislativo sem qualquer cerimônia.
É que desde 2015, discute-se a regulamentação legal do acordo de leniência, já que em 2010, o Brasil pareceu pretender cumprir os compromissos assumidos em 9 de dezembro de 2003 em Mérida, quando encaminhou ao Congresso um projeto de lei anticorrupção empresarial.
Mas o fato é que nossa Lei (12.846) erroneamente previu que o acordo de leniência seria celebrado entre órgão de controle interno e empresa suspeita de corrupção, sem Ministério Público e ninguém fiscalizando. Copiou-se modelo do acordo de leniência da lei antitruste mas lá o MP intervêm sempre e os conselheiros do Cade têm mandato e independência em relação ao Executivo.
Estes novos acordos da Lei 12.846, como se sabe, permitem acesso a financiamentos do BNDES, atestado de idoneidade garantidor de participação em licitações e redução de multas.
Diante da insegurança jurídica e carência de legitimidade destes acordos, negociados e estabelecidos sem sequer se saber o alcance dos objetos das investigações promovidas pelo MP, muitos controladores de todo o país, mesmo sem imposição legal e com louvável bom senso e prudência, convidam o MP para intervir nas negociações.
Visando sanar a falha grave de arquitetura jurídica, o senador Ricardo Ferraço em fevereiro do ano passado, apresentou o PLS 105 com uma única proposição: exigir a homologação dos acordos de leniência pelo MP para terem validade.
No entanto, o que estava ruim, piorou. E muito. O Senado desfigurou a proposta original e criou cenário grave, que desrespeita os tratados internacionais anticorrupção dos quais o Brasil é signatário, criando impunidade ainda maior para a corrupção.
E isto tem sido justificado com o argumento de que é necessário proteger a economia, o que afronta o artigo 5º da Convenção da OCDE que expressamente prevê a impossibilidade do uso deste tipo de argumento para não punir a corrupção empresarial.
Sob o pretexto de supostamente legitimar o MP, o Senado ampliou o rol daqueles legitimados a celebrar os acordos de leniência, incluindo AGU e o próprio MP.
No entanto, mantém a possibilidade de Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle (MTFC) e AGU celebrarem os acordos sem a participação do MP e sem qualquer fiscalização.
É sempre bom lembrar que o MTFC e a AGU são órgãos subordinados à Presidência da República e que seus chefes são de confiança do Presidente da República e demissíveis a qualquer tempo, não obstante haja servidores gabaritados nos quadros destes órgãos.
O Senado ainda enfraqueceu o Tribunal de Contas da União, pretendendo estender os efeitos dos acordos de leniência aos processos em curso no controle externo, sem sequer prever sua fiscalização sobre os acordos.
Ou seja, o que o Senado aprovou piora de forma substancial a Lei Anticorrupção, em vigor desde 29 de janeiro de 2014, expondo o país a riscos gravíssimos, deturpando a essência da Lei 12.846, oriunda dos pactos globais anticorrupção. Na Câmara o PL tramita sob o número 3636 em Comissão Especial.
Mas o que era péssimo, atingiu as raias do absurdo. Pois, em afronta brutal ao democrático processo legislativo de discussão de um projeto de lei, o Governo Federal editou em 18 de dezembro, no apagar das luzes de 2015, a Medida Provisória 703, tendo praticamente a mesma redação do PL 3636. Tal MP era inconstitucional e caducou, mas, ao menos, foi debatida para ser ou não transformada em lei.
Esta nova portaria é ato administrativo de gestão que usurpa o poder legislativo, violando o princípio da separação de poderes.
Punir as empresas e combater a corrupção melhora a economia, permitindo que novos empreendedores se estabeleçam por sua competência, empresas reduzam seus custos, o país possa ter mais e melhor infraestrutura, mais empregos e renda sejam gerados.
Salvar as empresas envolvidas não só é ilegal e imoral, como mantém o país na vanguarda do atraso. Estas situações relembram o coronelismo, de triste memória no Brasil, e têm sido rechaçadas e devem continuar sendo em nome da prevalência do bem comum, dos princípios republicanos, da democracia e do princípio da isonomia.
Não se pode permitir que alguns empreendedores desonestos comprem, protegidos pelo manto legal, a impunidade pela via dos acordos de leniência. É inadmissível levá-los à conclusão que vale a pena violar a lei para depois se acertar com o governo e se livrar de sanções graves.
Os acordos de leniência são instrumentos da investigação e não meio de salvamento de empresas flagradas em corrupção. Em razão disso, só fazem sentido se tiverem participação e anuência obrigatória do Ministério Público responsável pela investigação e fiscalização atenta do Tribunal de Contas competente.
*Texto alterado às 16h54 do dia 19 de dezembro de 2016.
Roberto Livianu é promotor de Justiça em São Paulo e doutor em Direito pela USP. Atua na Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos, é membro do MPD e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.
Júlio Marcelo de Oliveira é procurador do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União.
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