Fabiola Sucasas*
10 Dezembro 2018
Há 70 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos trazia para o mundo inteiro a esperança de que direitos básicos seriam reconhecidos e que graves violações contra a humanidade seriam prevenidas graças aos 30 artigos que dispunham de garantias como a autonomia da vontade. No Brasil, há 30 anos, a Constituição da República incorporava alguns destes princípios, em especial os da proteção à infância. Tantas décadas depois e o país viola os dois textos ao falhar em um tema urgente: o casamento infantil.
Quando se fala em casamento infantil, automaticamente pensamos em países distantes mas, infelizmente, este problema também tem residência fixa no Brasil, que ocupa a quarta posição em um ranking internacional em que são avaliados os números absolutos de mulheres casadas com idade inferior a 18 anos (estamos atrás da Índia, Bangladesh e Nigéria).
Na semana passada, o Ministério Público de São Paulo recebeu em sua sede o Banco Mundial, o Instituto Promundo e a Plan Brasil, que divulgaram os dados mais recentes sobre o problema que, estima-se, atinge mais de 700 milhões de meninas no mundo.
O casamento, ou a união estável, que para algumas pode ser um lindo conto de fadas, para estas garotas nada mais é do que uma forma perversa de perpetuar as desigualdades de gênero e o que é pior, incentivada, legitimada e tolerada pela sociedade.
Elas, que são vistas como minimulheres e não seres humanos em desenvolvimento, são privadas dos seus direitos básicos de viver a infância e adolescência por falta de opções (muitas se ‘amigam’ para não morrerem de fome ou porque engravidaram).
A Declaração, em seu artigo 16.º, afirma que ‘a partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais’.
Para as meninas, porém, os marcadores da realidade do casamento infantil cavam seu desenvolvimento e destino, impedindo-as, restringindo ou diminuindo o acesso a serviços básicos de saúde e educação.
A gestação, por exemplo, por si só submete as meninas a um perverso julgamento moral e de escolha, aos riscos à saúde nas gravidezes precoces, à redução das oportunidades de educação, obtenção de emprego e trabalho, ao maior risco à violência doméstica e estupro marital, ao estigma social, são meninas que tem sua infância interrompida e desrespeito absoluto ao direito reconhecido pela ONU, pela Convenção Cedaw, de as mulheres, de qualquer idade, viverem livres de violência e também a direitos fundamentais e sociais previstos na nossa Constituição Federal.
São poucas as atenções que o Brasil dá para o problema do casamento infantil, mesmo assim vistas como avanços. Uma delas, vale destacar, é o Projeto de Lei Complementar 56/2018 que visa proibir totalmente o casamento de crianças e adolescentes antes dos 18 anos, barrando as brechas existentes na lei atual – modificando o artigo 1520 do Código Civil, proibindo, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil.
Sabemos que o passo legal é um caminho importante para erradicar a prática, pois antes de tudo mostra do que estamos falando, mas não é o único para garantir a eficácia de um dispositivo constitucional que é muito caro, o da prioridade absoluta que o Estado e a sociedade devem dar para as crianças e adolescentes, além da própria obrigação do Estado assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações (artigos 226 e 227).
Para que estas terríveis histórias não tenham mais morada do Oiapoque ao Chuí, o Brasil precisa se comprometer, a longo prazo, com ações afirmativas de educação e empoderamento das meninas, dando subsídios e condições de autonomia econômica e social com a garantia inequívoca de acesso à educação e à saúde.
Aqui, acredito, que o projeto que desenvolvo, o de Prevenção da Violência Doméstica com a Estratégia de Saúde da Família, instituído em São Paulo tem como ser um instrumento de mudanças, já que a segunda edição da cartilha traz a temática do casamento infantil.
Uma fonte de inspiração é o exemplo de Bangladesh: naquele país, adolescentes tiveram um treinamento para que estas se tornassem agentes de saúde e, consequentemente, de mudanças em suas comunidades. Lá, elas compartilham as informações de modo que formem uma rede de apoio entre si, fortalecendo o diálogo entre as jovens.
O Ministério Público, comprometido com a defesa da ordem jurídica, social e dos direitos indisponíveis, está atento ao casamento infantil e confiante que os resultados da pesquisa e a articulação com instituições como o Banco Mundial, Promundo e a Plan International são fundamentais para lutar pelos direitos das meninas serem meninas- e não esposas como agora tristemente observamos nas periferias das grandes cidades e nos rincões do Brasil.
*Fabiola Sucasas, diretora do MPD, promotora de Justiça assessora, coordenadora do Núcleo de Inclusão Social / Direitos Humanos do Centro de Apoio Cível e Tutela Coletiva do Ministério Público do Estado de São Paulo
Clique aqui e leia o original no Estadão.
Deixar um comentário