Celeste Leite dos Santos*

27 Outubro 2018 |

O recurso aos perfis de DNA mediante o estabelecimento de banco de dados constitui método preciso de identificação de pessoas, em especial os autores de fatos puníveis, uma vez que inexistem duas pessoas com idêntico DNA. Sua aplicação no âmbito forense tem por fundamento o esclarecimento de delitos, como por exemplo, crimes sexuais. Dado o seu potencial de violação a direitos da personalidade tem se exigido sua previsão legal expressa a respeito de seus limites e fundamentos. No Brasil tal possibilidade se encontra prevista na Lei n. 12.654/2012.

Os perfis genéticos podem ser conceituados como a representação alfanumérica dos resultados derivados da análise do genoma humano com fins de identificação. O termo deriva da visualização dos resultados em forma de cromatogramas, onde os diversos picos formam – pela diferente posição que possuem – um perfil de ondas diferentes e únicas para cada pessoa (1).

O debate a respeito da constitucionalidade de dispositivos da Lei n. 12.654/2012 não é novo. Sobre o assunto aguarda-se o julgamento do recurso extraordinário RE 97837 que teve sua repercussão geral reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Novas luzes surgiram para o debate com a promulgação da Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018, em especial no caso de ausência de consentimento do condenado para integrar o banco de dados de perfil genético que, segundo o Ministério da Justiça até novembro de 2017 contava com cerca de 8.000 perfis.

O art. 9.º-A da Lei 7.210 de 1984 introduzido pela Lei n. 12.654/2012 estabelece:

“Art. 9.º-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1.º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA – ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor.

  • 1.º A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.
  • 2.º A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.”

De outra parte, a Lei de Proteção Aos Dados Pessoais (Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018), ainda em período de vacatio legis estabelece:

Art. 1.º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Art. 2.º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:

I – o respeito à privacidade;
II – a autodeterminação informativa;
III – a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;
IV – a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;
V – o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;
VI – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e
VII – os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

Art. 4.º Esta Lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais:

I – realizado por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos;
II – realizado para fins exclusivamente:
a) jornalístico e artísticos; ou
b) acadêmicos, aplicando-se a esta hipótese os arts. 7.º e 11 desta Lei;
III – realizado para fins exclusivos de:
a) segurança pública;
b) defesa nacional;
c) segurança do Estado; ou
d) atividades de investigação e repressão de infrações penais (grifamos).

Ainda que a nova lei tenha previsão legal expressa, deve-se analisar a compatibilidade da previsão com a proteção aos direitos da personalidade que foram alçados ao patamar de princípio reitor de nosso ordenamento jurídico com a previsão da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1.º, inciso III da CF).

Costuma-se apontar que a nova lei que estabelece a obrigatoriedade do estabelecimento de perfil genético de DNA violaria os seguintes direitos da personalidade: a) presunção de inocência; b) integridade física; c) intimidade; d) proporcionalidade; e) igualdade perante a lei; f) autodeterminação informativa (2).

Porém tais objeções não resistem a uma análise criteriosa de sobreditos princípios.

O princípio da presunção de inocência no qual decorre o princípio nemo tenetur se detegere não é violado, mas reforçado com o estabelecimento de banco de dados genéticos. O dispositivo legal restringe as hipóteses de condenação de inocentes, consoante assinalado na decisão n.º 8.239 da Comissão Europeia de Direitos Humanos que estabeleceu: “a possibilidade oferecida ao inocente de provar um elemento que o desculpa não equivale a estabelecer uma presunção de culpabilidade contrária a presunção de inocência”.

O princípio da proteção a integridade física tem sido invocado por aqueles que entendem que para a obtenção de mostras biológicas do corpo humano seria necessária a prática de intervenção corporal. Porém, tal premissa se afigura equivocada, pois além de não ser considerado invasivo o uso de cotonete, por exemplo, para a coleta do DNA do condenado, tal material genético é passível de ser obtido por outros meios, como fios de cabelo, pele, utensílios utilizados pelo condenado, de modo que se tratam de meios de prova legítimos a serem utilizados pelos órgãos responsáveis pela persecução penal. Sua eficácia probatória é a mesma de qualquer exame pericial.

O princípio da proteção a intimidade genética não é violado, uma vez que o diploma legislativo esclarece que sua finalidade se destina a auxiliar investigações criminais e reprimir adequadamente delitos praticados. Como nenhum direito fundamental possui caráter absoluto reputa-se que tal ingerência estatal é legítima desde que exercida nos limites da finalidade mencionada. No mesmo sentido o art. 8.º da Convenção Europeia de Direitos Humanos estabelece que inexiste violação a dito princípio nas hipóteses em que a medida se afigure necessária para a proteção do ordenamento jurídico, a prevenção de crimes e a proteção dos direitos dos demais. E exemplifica em consonância com o nosso diploma legislativo que a gravidade do crime, o grau de imputação e a probabilidade de êxito são circunstâncias que preponderam sobre o direito à intimidade genética.

Pelo princípio da proporcionalidade extrai-se a necessidade de que a medida seja autorizada por intermédio de decisão judicial fundamentada e que seja compatível com os valores estabelecidos em nossa Constituição.

O princípio da igualdade perante a lei leva ao questionamento do motivo pelo qual apenas determinados indivíduos podem ser colocados no mencionado banco de perfis genéticos e outros não. O interesse superior da sociedade no esclarecimento de delitos deve preponderar nesse caso. Isso porque tal discrímen não é fruto de injustificado preconceito ou etiquetamento de determinados tipos de criminosos, em verdadeiro retorno a um determinismo biológico nos moldes lombrosianos. Trata-se de instrumento apto a restaurar a confiança da sociedade de que o Estado é capaz de reprimir adequadamente os crimes cometidos e, portanto, a crença no próprio ordenamento jurídico.

Já por autodeterminação informativa se entende a tutela de dados pessoais que se encontrem armazenados em bancos públicos e privados e o efetivo poder de controle dos indivíduos sobre eles, através da imposição de deveres a terceiros. Ou seja, coloca em questão se é o caso de se criarem bancos de dados genéticos e, em caso positivo, em que circunstâncias e se estes poderiam ter duração ilimitada. Nesse caso entendo que nos moldes do art. 7.º, da Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 que estabelece o dever de consentimento sobre os dados pessoais incluídos em bancos de dados públicos e privados, o sentenciado que já tenha cumprido sua pena há mais de dois anos e preencha os requisitos referentes a reabilitação previstos nos arts. 93 a 95 do Código Penal e arts. 743 a 750 do Código de Processo Penal não poderiam ter sem o seu consentimento o seu perfil genético incluído ou mantido em banco de dados, ainda sob a justificativa genérica de potencial de esclarecimento de crimes futuros. Assim aguarda-se que o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 97837 estabeleça tal limite como teto máximo de inclusão do perfil genético de condenados contra a vontade destes.

Os bancos de dados de perfis genéticos não violam, desde que atendidos todos os requisitos enumerados supra, a dignidade da pessoa humana ou constituem forma de etiquetamento social. Ao revés, constitui mais um instrumento de segurança jurídica e imparcialidade no processo penal, pois permite a perfeita identificação do criminoso e constitui pressuposto para o reconhecimento da própria culpabilidade do acusado.

Mutatis mutandis, a inclusão e manutenção dos perfis genéticos nas hipóteses taxativamente previstas não possuem duração ilimitada, mas se subordinam ao consentimento do condenado, uma vez que a todo ser humano é dado o direito à reabilitação criminal (arts. 93 a 95 do Código Penal e arts. 743 a 750 do Código de Processo Penal e art. 7.º da Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018).

(1) ACOSTA, José Antonio Lorente. “Perfiles de Adn”. In: Enciclopedia de bioderecho y bioética. Disponível aqui. Acesso em 11.10.2018 (tradução livre).

(2) Casabona. Carlos María Romeo (Diretor). Enciclopedia de Bioderecho y Bioética. Disponível aqui. Acesso em 11.10.2018.

*Celeste Leite dos Santos, associada do Movimento do Ministério Público Democrático, promotora de Justiça MP-SP, coordenadora-geral dos Grupos do MP-SP e doutora em Direito pela USP

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