Juiz pode ser herói?

Publicado 25 de Abril, 2015

Por William Maia, São Paulo

Reconhecimento nas ruas, pedidos de autógrafos, aplausos em restaurantes e padarias, capas e mais capas de revista. Uma rotina comum a celebridades da TV, do cinema, da música e do esporte. Mas o que acontece quando quem se torna ídolo das massas é um juiz? Mais: quando se trata de um magistrado no chamado país da impunidade?
Na história recente, o caso mais claro dessa celebrização envolveu o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, visto por muitos como bom exemplo no combate à corrupção, durante o julgamento do Mensalão. A popularidade de Barbosa foi tamanha que seu nome passou a ser incluído –e bem cotado— em pesquisas eleitorais para disputar a Presidência da República, embora o ministro jamais tenha manifestado tal desejo publicamente.

Agora, processo semelhante ocorre com outro magistrado que está à frente de outro processo penal de corrupção na esfera federal: o juiz Sérgio Moro, responsável pela Lava Jato. De perfil menos midiático que Barbosa e sem a exposição diária na TV Justiça, Moro tem procurado fugir dos holofotes. Mas sua atuação firme, e também controversa, na condução do processo levou seu nome à boca do povo, aos cartazes de manifestantes e até a uma canção do compositor Fagner:

O JOTA ouviu operadores do direito de diferentes áreas para debater a seguinte questão: É bom para a democracia e para a Justiça que um juiz seja encarado como herói pela população?

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Oscar Vilhena Vieira, constitucionalista, diretor da Escola de Direito da FGV‐SP

É melhor que um juiz seja visto com herói do que como bandido. Se pensarmos no caso do magistrado do Rio de Janeiro que atuava no caso do Eike Batista, que prestou um desserviço à imagem da Justiça, a popularidade do juiz Moro e do ministro Barbosa não chega a ser um problema. Em casos de grande repercussão, como esse da Petrobras, essa celebrização resulta menos dos atos praticados pelo juiz, que apenas está fazendo seu trabalho, e mais do fato de a sociedade não esperar que a Justiça haja da maneira correta.

A expectativa da população sempre foi a de que as coisas no Brasil não dão em nada. As pessoas se surpreendem quando um juiz toma decisões que contrariam os interesses dos detentores do poder político e econômico, ainda que uma ou outra dessas decisões sejam discutíveis.

No julgamento do Mensalão, houve uma catarse, porque no começo poucos acreditavam que haveria investigação séria. E Houve. Depois, poucos acreditavam que os suspeitos seriam efetivamente processados. Foram. E no fim, ninguém acreditava que eles seriam condenados. A população foi surpreendida e isso gerou uma comoção inédita, que culminou na popularidade do ministro Joaquim Barbosa.

No caso da Lava Jato, vejo no juiz Sérgio Moro um perfil um pouco distinto do ministro Barbosa. Ele fala pouco, não dá entrevistas, é mais “low profile”, digamos. Mas isso não o livra desse endeusamento, embora não pareça que procure por ele, está apenas cumprindo sua função.

Diferentemente do ministro Barbosa, que era mais midiático, e ainda estava no contexto da superexposição do Supremo, decorrente das transmissões dos julgamentos pela TV Justiça. Esse é um desenho institucional novo, ao qual ainda estamos nos adaptando. Não conheço outro lugar do mundo em que os julgamentos da Suprema Corte sejam acompanhados como se fosse uma partida de futebol. O televisionamento mudou a forma como a sociedade acompanha a Justiça. E isso foi positivo para o Brasil, porque trouxe mais transparência ao Judiciário, ainda que ao custo da superexposição.

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Roberto Luiz Corcioli Filho, juiz de direito em São Paulo*, conselheiro da Associação Juízes para a Democracia (AJD)

O juiz que é aplaudido pela sociedade, quando falamos de processos criminais, é aquele que se destaca em feitos de repercussão com uma atuação “firme”, que muitas vezes provoca uma espécie de catarse na população.
A criminalização no Brasil está intrinsecamente ligada a uma estrutura de dominação, em que atos socialmente reprováveis mais típicos das classes menos favorecidas, justamente pela brutal desigualdade de renda e desagregação social, são muitíssimo mais criminalizados e selecionados pelo sistema de Justiça do que aqueles praticados pelas classes dominantes, nas esferas financeira, tributária, ambiental ‐ com um potencial lesivo à comunidade infinitamente maior.

Pesquisas têm demonstrado, inclusive, uma preocupação maior por parte do MP e do Judiciário com as garantias dos acusados quando estes são provenientes dessas classes mais favorecidas (como os próprios promotores e juízes o são). Também pela própria complexidade probatória e pela exigência de uma certeza processual em grau geralmente mais elevado do que aquela aplicada ao delito ordinário contra o patrimônio praticado por um jovem excluído de periferia, por exemplo, muitos dos chamados criminosos do colarinho branco, assistidos por competentes advogados, acabam sendo absolvidos.

Essa dinâmica produz na população uma indignação, mas que em certa leitura pode também ser vista como uma espécie de inveja inconsciente pela imunidade de alguns “figurões”. Tanto que muitos dos que clamam pela punição severa dos corruptos (aqueles, em detrimento de outros ligados a grupos diferentes, selecionados pela mídia e pelo sistema de Justiça em razão de certo contexto político, inclusive) não hesitam em oferecer um “café” ao guarda de trânsito para se livrar de uma multa.

Nesse sentido, tem‐se aí também a figura do bode expiatório e mais uma vez o “juiz herói”, rigoroso em sua atuação no processo criminal, é ovacionado. Ocorre que o papel do juiz em nossa democracia não deveria ser o do agente político que “combate o crime”, que procura “vencer a impunidade”, ou mesmo que se imbua da missão de “expandir democraticamente o punitivismo” também em desfavor das classes dominantes.

Em um Estado Democrático de Direito o juiz é aquele sujeito que tem por missão fundamental garantir direitos. Ou seja, temos, na seara criminal, um órgão estatal, em seu monopólio da violência, procurando fazer prevalecer a pretensão punitiva, temos a advocacia e a defensoria pública de outro lado procurando resistir a tal pretensão, e temos a figura do juiz que serve para mediar essa disputa, tendo como norte de sua atuação a prevalência dos direitos e garantias dos acusados.

Juiz não é órgão de segurança pública e juiz não tem compromisso com a diminuição da “impunidade”. Assim, o perigo da figura do “juiz herói” é justamente o reforço de uma ideia equivocada na população. E os cidadãos, sem terem consciência disso, acabam protagonizando a reivindicação da destruição de sua própria cidadania, posto que um Estado no qual não haja um órgão independente e imparcial para, na esfera criminal, fazer valer os direitos e garantias do acusado acaba exercendo seu poder de dominação e opressão em face dos indivíduos tal qual o Leviatã.
*Corcioli foi transferido para uma vara cível, por divergir da cúpula do TJ‐SP a respeito do papel do juiz criminal.

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Roberto Livianu, promotor de Justiça em SP, presidente do Ministério Público Democrático (MPD)

É uma situação complexa. O Brasil é um país carente de heróis.
Quem historicamente tem ocupado esse espaço são esportistas: Ayrton Senna, Gustavo Kuerten, Ronaldo, entre outros. Para um povo, acho ruim que exista essa dependência de uma figura heroica que simbolize a esperança.
No que se refere à Justiça, não é saudável que se dependa dessas figuras para que se acredite nas instituições. A Constituição Federal tem como um de seus princípios basilares a impessoalidade. Isso existe para que os poderes possam funcionar, com seu sistema de pesos e contrapesos, sem depender do protagonismo destacado de uma pessoa ou de outra.

Não é o que vejo nesse caso da Lava Jato. Acredito no trabalho do juiz Sérgio Moro, é um magistrado sério, que está cumprindo seu papel. Não creio que ele esteja buscando por essa notoriedade. Posso até divergir em um ponto ou outro, e divirjo, mas vejo um trabalho firme, seguro. Ele é um grande especialista em crimes financeiros, que são extremamente complexos.

Os crimes de corrupção não são como quaisquer outros, o combate a eles deve ser prioritário, pelo tamanho do mal que eles causam à sociedade. Pela magnitude dos fatos investigados e pela repercussão na mídia –e esse caso deve estar na mídia mesmo‐‐, o processo acaba gerando esse protagonismo do juiz, é uma questão inerente a sua atividade. Se ele não der a cara, vai parecer que está escondendo algo e a regra é a transparência, a publicidade, não o segredo, como foi no passado.

Por outro lado, o juiz não pode ser exibicionista, ele deve atuar de forma serena, não pode ser um assassino de reputações. Deve falar apenas sobre o que já foi decidido, jamais sobre o que ainda não foi analisado ou pode acontecer. Juízes e promotores devem estar preparados para lidar com a pressão da sociedade, que muitas vezes pode vir na forma de aplauso, mas também pode ser uma vaia. Durante muitos anos, fui promotor do Júri e vivenciei isso. É preciso muito preparo, porque é uma consequência inevitável da atuação profissional.

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Renato de Mello Jorge Silveira, advogado criminalista, professor de direito penal da USP

Genericamente, não gosto da ideia de termos um juiz herói. Essa figura emblematizada, idealizada pelas massas, não é o juiz ideal. As massas muitas vezes querem mais do que Justiça, querem justiçamento, querem vingança, querem condenações a qualquer custo, querem uma resposta para as mazelas do país. E esse não é o papel de um juiz. O juiz deve julgar de acordo com a lei e absolver se não houver provas contra o acusado. Só condenar se a culpa for comprovada inequivocamente.

Deve conduzir o processo de forma serena, garantindo o direito de defesa. Sempre vai existir o risco de que esse magistrado heroificado esqueça a racionalidade no tocar da Justiça, assuma, ainda que inconscientemente, a responsabilidade de dar uma resposta aos aplausos. Essa é uma situação perigosa, porque o aplauso não é racional. Na história, são vários os exemplos de juízes que eram benquistos pela população da época, que eram aplaudidos, idolatrados, mas que não representavam a Justiça. Com o passar do tempo foram requalificados como exemplos de autoritarismo.

A Têmis carrega uma venda nos olhos para representar a Justiça que não se importa com quem está julgando e com quem está ao redor. Ainda que o juiz não busque os holofotes, ele pode ser tornar uma vítima deles, perdendo a imparcialidade. Seduzido pela alta exposição, pode perder o foco no processo e na legalidade. É uma situação muito comum na Espanha, essa sedução midiática do juiz estrela, mas lá nós já tivemos exemplos de como esse voluntarismo pode ser deletério.

O caso mais emblemático é o do juiz Baltazar Garzón, tido como uma estrela por ter determinado a prisão de Pinochet, mas que acabou ele mesmo sendo vítima de suas ações, e expulso da magistratura por abuso de poder. Além disso, contesto essa teoria de que a Justiça deve ser mais punitivista quando se trata de um “crime de rico”, de colarinho branco, do que quando se trata de um “crime do pobre”. O juiz deve se ater ao que está na lei e nos princípios constitucionais. O poder estatal é limitado por esses princípios, e não pelo tipo de crime ou pelo tipo de réu.

Veja original aqui.