Em 2017, o Projeto de Lei da Câmara 07/2016, que propôs a alteração da Lei Maria da Penha e possibilitava ao delegado de polícia o deferimento de medidas protetivas à mulher em situação de violência foi vetado. O assunto foi retomado pelo PLC 94/2018 e, mais uma vez, iniciativa semelhante vem à tona, porém de forma mais ampla e preocupante.
O MPD publicou nota de repúdio à iniciativa e aqui reitera seu posicionamento, afinal por todo esse período, foram vozes das mais variadas associações de classe, membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Poder Judiciário de todo o Brasil, além de outras instituições e entidades representativas da sociedade civil, e principalmente do movimento de mulheres, que vem clamando para que este projeto não prossiga. Não se nega a realidade epidêmica que a violência doméstica e familiar contra a mulher representa no Brasil, porém o deferimento ou não das medidas protetivas não é – e nem deve ser – função de polícia civil ou militar, haja vista uma série de motivos, alguns dos quais destacamos:
1. O projeto de lei é INCONSTITUCIONAL. O poder de decisão incumbe ao juiz e não à autoridade policial ou a qualquer policial civil ou militar, que não são investidos na função jurisdicional. A permissão para que estes profissionais decidam sobre o deferimento ou não de medidas protetivas de urgência fere o princípio da tripartição dos Poderes e atropela os poderes constitucionais conferidos ao Poder Judiciário.
É inadmissível justificar a lentidão do Judiciário como a razão do deferimento das medidas protetivas pela autoridade policial ou polícia militar, como prevê o Projeto de Lei. Isto não é, e nem deve ser, função de polícia. Ademais, a lei já prevê que, à autoridade policial, incumbe a adoção, de imediato, das providências cabíveis ao tomar conhecimento da ocorrência, dentre elas o próprio encaminhamento do pedido de medida protetiva de urgência à Justiça para sua apreciação inclusive em sede de plantão judiciário, além de garantir proteção policial quando do atendimento à mulher em situação de violência, quando necessário.
2. Embora as Delegacias de Defesa das Mulheres (DDMs) e as Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres (DEAMs) apareçam como os primeiros serviços públicos específicos para mulheres vítimas de violência já que representem um relevante papel na preservação da integridade física e emocional das mulheres que sofrem violência, assim como as Delegacias não especializadas, e embora haja expressa previsão na Lei 11.340/06 que o atendimento policial e pericial seja especializado e ininterrupto, além de prestado por servidores previamente capacitados, de preferência do sexo feminino, não é a realidade vivida na prática pelas mulheres. De fato, tais espaços tem se constituído em deficiências no fluxo de atendimento às mulheres em situação de violência: medidas protetivas deixam de ser encaminhadas no prazo legal à autoridade judiciária e as encaminhadas pecam pela precariedade de dados; as mulheres não são acompanhadas às suas casas para buscar seus pertences e muitas sequer sabem deste direito; ou então pouco se fala na possibilidade do fornecimento de transporte para abrigo ou local seguro quando houver risco de vida.
Os mais de doze anos de vigência da Lei Maria da Penha mostram que a violência institucional recorrente nas delegacias de polícia justifica não a ampliação de atribuições da autoridade policial – e muito menos da polícia militar – em nítido abuso do poder constitucional afeto ao Judiciário, mas sim, à premente necessidade de exigir, destas autoridades, o exercício regular do que já lhes foi estabelecido pela lei – e reforçado em sua alteração através da Lei n. 13.505/2017.
3. Antes de alterar a Lei Maria da Penha, considerada uma das três melhores do mundo pela ONU no que se refere ao enfrentamento da violência contra a mulher, é preciso dar efetividade aos seus dispositivos.
Não se pode enxergar o enfrentamento da violência doméstica e familiar como uma questão afeta exclusivamente à esfera policial. A mulher em situação de violência deve ser orientada no sentido de que recursos e serviços de assistência social, saúde e outros órgãos estão aptos a contribuir para esta finalidade, inclusive no que se refere à busca da concessão de medidas protetivas, pelo juiz, independentemente do registro da ocorrência e do inquérito policial.
4. Apesar de sedutora por fazer acreditar que as mulheres estarão mais protegidas, há de ser avaliada a complexidade da dinâmica da violência doméstica e familiar contra a mulher e contar com os riscos de que a alteração legislativa possa acarretar no que diz respeito a perpetuação do silêncio das mulheres, considerando inclusive as mais variadas realidades de territórios brasileiros como das comunidades tomadas por organizações criminosas. A difícil decisão em denunciar o agressor em âmbito policial e também a de manter esta denúncia afigura-se uma das marcas mais penosas que acompanham as mulheres em situação de violência doméstica justamente em função dos vínculos familiares ou afetivos que as mulheres tem ou tiveram com os autores de violência. O Superior Tribunal de Justiça já assentou entendimento de que as medidas protetivas não são vinculadas ao inquérito policial ou qualquer ação judicial, pois um de seus requisitos não se atrela à prática de crime, bastando a situação de violência (REsp n. 1.419.421-GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4a Turma, j. 11.2.2014). Conceber à autoridade policial e à polícia militar o poder de decidir sobre a medida protetiva pode intimidar o registro dos fatos, pois não necessariamente é este o desejo das mulheres para obter proteção. A alteração legislativa dá a falsa impressão de que esta será uma condição, aumentando os desafios das políticas públicas voltadas ao enfrentamento desta violência.
5. A Lei Maria da Penha é fruto de larga discussão entre organizações representativas dos direitos das mulheres. Alterar a lei sem atentar aos argumentos destas organizações é ilegítimo. Acompanham este entendimento o Consórcio Nacional de Organizações que elaborou o anteprojeto de lei Maria da Penha (Cepia, Cfemea, Cladem e Themis), as organizações feministas, de mulheres e de direitos humanos, bem como o Conselho Nacional de Procuradores Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG), por intermédio do Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH) e Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (COPEVID), o Forum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege), a Ordem dos Advogados do Brasil, além de outros movimentos e instituições.
Diante disso, O Movimento do Ministério Público Democrático clama ao Exmo. Sr. Presidente da República Jair Messias Bolsonaro que vete o PLC 94/2018, manifestando a importância da preservação das funções institucionais para que direitos fundamentais não sejam sacrificados. Justificar a lentidão do sistema de justiça para criar mecanismos que maquiam a garantia de tais direitos não é proteger, mas abandonar o verdadeiro sentido de pilares sólidos do Estado Democrático de Direito e do trabalho em rede que norteia o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.
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