11/04/2016
Publicado no O Globo
Projetos de combate à corrupção já enfrentam ataques no Congresso
Especialistas alertam que propostas em curso podem dificultar investigações
SÃO PAULO — Nos últimos dois anos, enquanto a Operação Lava-Jato revelava minúcias da corrupção no Brasil, inúmeros projetos foram apresentados ao Congresso para regular o tema. Em 2015, foram cerca de 200 proposições, cinco vezes a média dos últimos dez anos. O que se vê, no entanto, é que a preocupação com o assunto pode não resultar em maior resguardo da população brasileira. As propostas que tramitam com mais rapidez são justamente as que podem criar dificuldades para investigações ou embutem mecanismos que abrandam punições.
Risco de Impunidade
No total, 528 proposições que versam sobre corrupção tramitam pelas comissões da Câmara dos Deputados e do Senado sem que se transformem em leis capazes de moralizar a administração pública. Algumas estão no Congresso há uma década. Em 2005, Anselmo de Jesus, um agricultor que chegou à Câmara eleito pelo PT de Rondônia, decidiu cortar na própria carne. Apresentou uma proposta de emenda à Constituição que extingue o foro privilegiado para deputados e senadores. Em dez anos, recebeu um único parecer favorável, até hoje não votado.
— No Congresso, o mais fácil é fazer um projeto parar. Difícil é fazer andar — diz o deputado Mendes Thame (PV-SP), presidente da Frente Parlamentar Mista de Combate à Corrupção.
Na contramão da proposta de Anselmo de Jesus, parlamentares passaram a discutir nas últimas semanas a ampliação do foro privilegiado a ex-ocupantes de cargos públicos, como presidentes da República. Incomodados com os dois anos de atuação da Lava-Jato, muitos parlamentares já defendem um prazo máximo de duração para as investigações. Um projeto de lei do senador Blairo Maggi (PR-MT), por exemplo, estabelece o prazo de 12 meses, prorrogável por igual período uma única vez, para a conclusão de inquérito. Se esse prazo já estivesse em vigor, muitos inquéritos abertos pela Lava-Jato seriam prejudicados.
Projetos que tramitam com rapidez têm gerado receios entre os adeptos de medidas duras contra a corrupção. No fim de março, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), determinou que o projeto de revisão do Código Penal, apresentado em 2010, passasse a tramitar em comissão especial, agilizando seu andamento. Mais de 80 projetos de lei já foram apensados — 44 deles apresentados depois do início da Lava-Jato. A corrida gera incertezas.
— A sociedade precisa ficar atenta. Chama atenção que mudanças importantes no Código Penal entrem na pauta de discussões neste momento conturbado — afirma Rodrigo Chemin, procurador da República no Paraná.
Para Chemim, o Brasil corre o risco de repetir o que aconteceu na Itália depois da Operações Mãos Limpas, quando os políticos passaram a mudar as leis para garantir a impunidade e evitar que continuassem a ser alcançados por investigações sobre pagamento de propinas.
Em 2014, quando a Polícia Federal cumpriu a primeira fase da Lava-Jato, o alvo ainda era a atuação de doleiros. O esquema de corrupção na Petrobras, com participação de partidos políticos e das maiores empreiteiras do país, só foi desvendado no decorrer das investigações. Até março, haviam sido instaurados 1.114 procedimentos investigatórios.
— É pelo Parlamento que pode começar a mudança para alcançar maior efetividade da legislação penal em crimes do colarinho branco; mas é também pelo Parlamento que o caminho inverso pode se concretizar, permitindo a perpetuação de modelos corruptos de fazer política — alerta Chemim.
Mendes Thame vê nas discussões do marco regulatório de bingos e cassinos no Brasil, hoje proibidos, uma facilitação da lavagem de dinheiro. O lobby, segundo Thame, é poderoso, ao sinalizar com empregos e investimentos internacionais:
— É a maior lavanderia do mundo. De um lado, o dono do bingo simula perda. De outro, o dono da fortuna ilícita simula ganho e legaliza o dinheiro sujo — explica.
Para Thame, porém, nada é mais grave do que a tentativa do próprio governo de beneficiar as empreiteiras com uma medida provisória que muda as regras do acordo de leniência, permitindo que eles sejam negociados sem a participação do Ministério Público. A medida, que está em vigor mas precisa ser confirmada pelo Congresso até 29 de maio para não perder seus efeitos, também prevê que a celebração do acordo impede a continuação de ações de improbidade.
— Projetos tentam burocratizar as investigações, obrigando que o Ministério Público notifique o advogado do investigado a cada ato. Todos sabemos que a demora leva à impunidade — diz o promotor Roberto Livianu, do Ministério Público Democrático e do Instituto Não Aceito Corrupção.
Segundo Livianu, com a bandeira de moralizar o pagamento a servidores, o Executivo incluiu num projeto o corte de auxílios pagos a juízes e procuradores.
— É uma clara retaliação às investigações feitas pelo Ministério Público.
Propostas do MPF podem virar lei em um ano
Em apenas nove meses, a campanha “10 Medidas Anticorrupção”, idealizada pelo Ministério Público Federal, obteve dois milhões de assinaturas para virar projeto de lei. Numa única proposta de iniciativa popular foram reunidas medidas para inibir a corrupção e punir o enriquecimento ilícito de agentes públicos.
O projeto de Lei 4.850/2016 reúne 20 propostas legislativas, divididas em 10 temas, e a previsão é que sua tramitação na Câmara dos Deputados, que ocorrerá em Comissão Especial, dure pelo menos um ano. A campanha foi coordenada pelo procurador da Operação Lava-Jato Deltan Dellagnol.
O deputado Mendes Thame (PV-SP), que subscreveu a proposta, explica que já existiam no Congresso muitos projetos de lei destinados a coibir a corrupção, que ficavam emperrados. Agora, segundo ele, a notoriedade dada à corrupção pela Operação Lava-Jato deve ajudar a mobilizar a sociedade para aprovação, como ocorreu com a Lei da Ficha Limpa.
Uma das novidades é a vinculação do tempo de pena ao volume de recursos envolvidos. Para valores até R$ 80 mil o tempo de pena varia de quatro a 12 anos. Para quantias entre R$ 80 mil e R$ 799 mil, a pena varia de sete a quinze anos de prisão. Se o valor for maior do que R$ 800 mil, a prisão será de 10 a 18 anos. Em casos de quantias superiores a R$ 8 milhões, a pena alcança entre 12 e 25 anos de reclusão.
O tratamento para altos valores seria o mesmo do crime hediondo.
A punição mínima para o crime de corrupção passa de dois para quatro anos.
O enriquecimento ilícito de agentes públicos também passaria a ser crime. Caso possua recursos incompatíveis com sua renda e que não possa comprovar a origem, o servidor público pode ser condenado a pena entre três a oito anos de prisão.
Segundo o promotor Roberto Livianu, do Instituto Não Aceito Corrupção, a discussão centrada em torno do impeachmet tira o foco dos demais projetos em tramitação no Congresso Nacional.
MEMÓRIA: ITÁLIA TEVE DECRETO SALVA-LADRÕES
Estudioso da Operação Mãos Limpas, o procurador Rodrigo Chemim reuniu uma série de leis adotadas na Itália para livrar políticos de investigações e perpetuar a corrupção. A lista assusta e dá uma ideia de até onde políticos podem chegar em benefício próprio.
Num só decreto, o ministro da Justiça, Giovanni Conso, eliminou, em 1993, as penas do financiamento ilícito a partidos políticos e determinou a volta do sigilo das investigações, que havia sido eliminado do Código de Processo Penal italiano em 1988.
Em 1994, foi aprovado o Decreto Biondi, que ficou conhecido como “salvaladri” – salva-ladrões. O decreto proibiu a prisão preventiva para crimes contra a administração pública e o sistema financeiro. No máximo, os acusados podiam ser colocados em prisão domiciliar. Segundo Chemim, o decreto foi tão escandaloso e deixou a população tão indignada que ficou em vigor apenas uma semana.
Assim como na Lava-Jato acusados contestam as provas vindas da Suíça, na Itália o primeiro ministro Sílvio Berlusconi chegou a aprovar uma lei que anulava todas as provas provenientes do exterior por cartas rogatórias. As provas teriam sido enviadas diretamente aos investigadores, sem passar antes pelo Ministro da Justiça. A medida, segundo Chemim, resultou numa forte insatisfação dos demais países envolvidos. Mais tarde, os tribunais concluíram que a lei contrariava convenções internacionais assinadas pela Itália.
Uma lei também suspendeu processos contra os presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado, do Conselho dos Ministros e da Corte Constitucional. Adotada em junho de 2003, ela acabou durando menos de um ano. Foi julgada inconstitucional.

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