A proposta desta entrevista é a de apresentação de 10 questões para respostas diretas de Monique Rodrigues do Prado, 28 anos, advogada na área da saúde e direito de família, facilitadora no Instituto Gaio, fundadora do Afronta Coletivo, trabalho sociocultural protagonizado por mulheres negras que acredita na disseminação da cultura afro-brasileira. Participa do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil. E compõe o corpo jurídico de advogados voluntários da EDUCAFRO.

O tratamento como suspeitos padrão, a violação de direitos e um sistema educacional que exclui o protagonismo do negro na história do país são três de assuntos essenciais que comenta.

MPD Dialógico – Por que a violência atinge sempre e cada vez mais o suspeito padrão?

Monique Prado – “Suspeito padrão” é uma visão historicamente concebida. Explico, no período pós abolição o Estado Brasileiro deixou de criar condições para que o negro, recém “abolido” prosperasse socialmente. Assim, em detrimento de políticas públicas instituídas na época que traziam ao Brasil estrangeiros, como italianos e japoneses, os quais tinham a garantia do trabalho e propriedade privada, viu-se minar, por outro lado, a consolidação da população negra, já que na época, esses eram considerados objeto e não sujeitos de direito.

A ausência de condições mínimas de subsistência colocou os negros literalmente à margem da sociedade, os expulsando dos grandes centros por meio desse processo de gentrificação. Com isso, os negros passaram a viver a própria sorte.

O Estado, ao invés de romper esse ciclo e permitir a consolidação do negro enquanto sujeito de direito, fez o contrário: instituiu inclusive no Código Penal Brasileiro, entre outros crimes, o crime de vadiagem e hoje o tráfico de drogas, como institutos que chancelam juridicamente o racismo institucional.

A segurança pública passa a recrutar esses homens embrutecidos pela própria característica do Estado. O resultado são homens negros em conflitos diários onde em uma ponta encontram-se esses soldados do Estado e em outra os negros “marginalizados”. Essa violência institucionalizada é despertada no imaginário da população através de discursos de ódio criando essa figura do negro como o verdadeiro inimigo do Estado, gerando um ciclo de conflitos à exemplo do que temos no Rio de Janeiro, onde o Exército e a Polícia Militar, que possuem em sua linha de frente negros, matam outros negros que estão do outro lado da ponta (não há necessidade de tantas mortes).

Pois bem, esse “suspeito padrão” é fruto da herança escravocrata, da histórica violência institucional e da escassez estatal quando o tema é o reconhecimento desse sujeito de direito.

MPD Dialógico – Por que a educação de baixo nível assola os ambientes pobres, de qualquer natureza?

Monique Prado – A questão do acesso deve ser levada em conta para responder essa pergunta, mas não só o acesso à educação propriamente dito.

Para que o aluno tenha sua formação escolar bem-sucedida, é preciso que ele tenha uma boa alimentação, boa vestimenta, segurança, um lar estruturado que lhe permita desenvolver outras competências acessórias ao aprendizado e ao desenvolvimento do cognitivo como: brincar, ter bom relacionamento com os seus familiares e com a sua comunidade.

Ocorre que assola em grande parte das famílias brasileiras, sobretudo as de renda baixa, esse mal da ausência de estruturas que permitam o pleno desenvolvimento infantil.

Na adolescência, o fracasso do ensino se confirma, principalmente porque o modelo de ensino é pouco atrativo para os jovens e as escolas públicas são cada vez mais parecidas com penitenciárias, ou seja, grandes muros, materiais sucateados, ausência de bibliotecas e laboratórios, as salas superlotadas e a falta de autonomia dos alunos.

A sistemática do ensino no Brasil, sobretudo do ensino público fundamental e médio, desconsidera o sujeito e parte da premissa de que o indivíduo é sempre um número compondo uma grande massa.

No tocante ao ensino superior, o acesso continua um fator chave decorrente desse ciclo de fracassos advindos do ensino de base, o que enseja o número massivo de alunos advindos de escolas particulares em universidades de primeira linha, razão pela qual as políticas afirmativas sociais e raciais têm sido medidas reparadoras de sucesso em face desses privilégios de acesso.

MPD Dialógico – Por que o exercício do direito é sempre de segundo nível para negros e pobres? 

Monique Prado – A Constituição Federal reconhecida no meio jurídico como garantista avançou em relação às anteriores, sobretudo no aspecto social e principalmente quanto aos direitos trabalhistas. Entretanto, há outros fatores desconsiderados pelo constituinte originário.

Explico, o Estado Brasileiro jamais negou ao homem branco sua característica de sujeito de direito. É bem verdade que, quantos aos direitos civis e políticos, as mulheres brancas também foram preteridas nesse processo civilizatório.

Ocorre que a herança escravagista sobre os povos negros recai fortemente até os dias de hoje.

A consequência é o retardamento ou a completa violação de direitos das pessoas negras, como o direito de ir e vir, a dignidade da pessoa humana, a liberdade de crença ou a presunção de inocência, dentre tantas outras violações.

Essa transgressão por parte do Estado é fruto da mesma origem, ou seja, a desumanização e a hierarquização dos indivíduos, razões pelas quais a regulação e o nivelamento de direitos pressupõem ampla discussão de medidas reparadoras que possibilitem às minorias políticas, tais quais, as pessoas negras, o gozo de seus direitos.

MPD Dialógico – Por que a discriminação racial e de classe não é discutida nos ambientes escolares?

Monique Prado – Por séculos, o Brasil viveu um grande silenciamento no tocante às discriminações racial e de classe – que por sinal ainda hoje se conjugam – em todos os setores da sociedade, não só nos ambientes escolares.

Esse silenciamento guarda origem na política de embranquecimento ao trazer imigrantes europeus e, mais tarde, no mito da democracia racial que surgiu a partir do século XX nas obras de autores como Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.

Além disso, a completa negação do Estado quanto às contribuições da população negra à sociedade brasileira, seja propriamente na construção civil ou na culinária, nas artes, na religião e cultura, na tecnologia e na literatura, fez com que a grade curricular não abarcasse o negro como protagonista, mas sim como vilão histórico.

Entretanto, com esforço da sociedade civil e dos movimentos sociais, o ordenamento jurídico instituiu a Lei 10.639/2003, que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, ressalta a importância da cultura negra na formação da sociedade brasileira; bem como a Lei nº 12.711/2012, a qual garante o ingresso de negros e indígenas oriundos do sistema público de ensino nas universidades federais e de ensino técnico.

Assim, as cotas raciais tiveram o condão de jogar luz na questão da discriminação racial, de modo que, ainda que de forma muito tímida, em âmbito universitário se nota avanços na temática.

No tocante ao ensino de base, a perspectiva é lamentável, mesmo sob a égide da Lei Federal mencionada, visto que o conservadorismo do Governo tem freado planos pedagógicos mais progressistas, refletindo na ausência dessa discussão em ambiente escolar.

MPD Dialógico – Por que a violência contra a mulher negra permanece longe da opinião pública?

Monique Prado – Atravessamos um momento onde a intolerância, a violência doméstica e obstétrica e, em última escala, o feminicídio têm sido manchete de jornais quase que cotidianamente.

Perpassa por essas violências, entre outros fatores, a masculinidade tóxica, o sexismo e a desigualdade no mercado de trabalho.

Entretanto, ao fazer um recorte racial, observa-se que entre mulheres negras esse número é ainda mais assustador. Segundo informações do Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil, no período entre 2003 e 2013, o número de homicídios das mulheres negras saltou de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Em contraposição, houve recuo de 9,8% nos crimes envolvendo mulheres brancas, que caiu de 1.747 para 1.576 entre os anos.

Denota-se que o aspecto cultural também não pode ser olvidado, pois no geral as condições socioeconômicas de mulheres negras são inferiores mesmo em detrimento às mulheres brancas.

Com efeito, o tema rechaça a opinião pública, visto que mexer nessa estrutura acarretaria investigar o porquê o acesso à justiça e direitos e garantias básicas a essas mulheres não estão sendo garantidos.

Além disso, requer maior preparo e investimento nas delegacias especializadas, nas casas de apoio a essas mulheres e, também, políticas restaurativas aos agressores, medidas essas já existentes, mas muito insignificantes perto do crescimento desenfreado dessa violência.

Dessa maneira, cabe ao Estado centralizar políticas públicas capazes de exprimir um estado de segurança nessas mulheres, seja em casa, no trabalho, e nas próprias instituições estatais.

MPD Dialógico – Por que a educação dentro de casa de jovens negros precisa de um tipo de manual de conduta para andar livremente nas ruas?

Monique Prado – Como elucidado, um jovem negro, principalmente homem, precisa ficar em estado de alerta o tempo todo ao sair de casa, especialmente por ser o alvo principal da polícia.

Na tentativa de atenuar essa violência sobre os corpos negros, os pais tentam prevenir os seus filhos desde muito cedo, os orientando quanto ao porte de documentos de identificação e adequação de comportamento.

Mais uma vez, tudo isso perpassa pela escassez do Estado em conseguir garantir a vida, o direito de ir e vir e a liberdade de expressão, dado que o Estado de forma discricionária e arbitrária através de seus agentes elegeu como ameaça à população o jovem, negro e periférico, símbolo da seletividade penal, do desequilíbrio do judiciário, da violência institucional e do encarceramento em massa.

Daí vimos essas aberrações de 80 tiros em uma família negra, uma criança uniformizada sendo alvejada, um jovem sendo asfixiado até a morte em um hipermercado e um garoto sendo preso por portar Pinho Sol.

MPD Dialógico – Por que o negro não tem suas bandeiras defendidas de forma contundente e clara no Congresso Nacional?

Monique Prado – No Brasil, apenas 4% dos parlamentares são negros. Esse número contrasta os 54% da população nacional considerada preta e parda.

Assim, as pautas levadas ao Congresso ainda são mobilizadas por uma parcela muito pequena, muitas vezes articuladas pelos movimentos sociais e pela sociedade civil em razão da difusão da participação popular no que tange aos manifestos, protestos, audiências públicas e, no judiciário, amigo da Corte, sofrendo grande pressão do eleitorado em face desses parlamentares.

Entretanto, ainda é inexpressiva a representatividade política perto da urgência que as pautas demandam.

MPD Dialógico – Por que os cultos afros estão sendo perseguidos?

Monique Prado – O Brasil pressupõe o Estado laico como princípio constitucional ao dispor no art. 5º, inciso VI, a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Ocorre que a herança portuguesa, de matriz católica, incutiu a ausência de neutralidade na atuação do Estado, visto que penetrou em suas instituições a ideologia ortodoxa cristã.

Ademais, a ausência de reconhecimento da contribuição negra como parte da cultura afro-brasileira gerou a demonização de tudo aquilo que não cultua o modelo eurocentrado e ocidental.

Portanto, trata-se da ausência de identidade e sentimento de pertencimento especialmente porque não há um profundo compromisso pedagógico para incorporar os cultos afro-brasileiros como elementar do próprio Estado Brasileiro.

Em última análise, a exotificação dessa expressão religiosa acaba despertando ódio daqueles que não querem criar qualquer identidade e empatia com o diferente ou que não tem interesse de entender a complexidade que é o Brasil.

MPD Dialógico – Por que os integrantes das forças de segurança não se enxergam como negros?

Monique Prado – Em razão da militarização dessa prestação de serviço estatal, o agente sequer avalia a profundidade das relações estabelecidas entre ele (agente) e o indivíduo que está sendo averiguado. Trata-se, portanto, de uma grande massa cuja individualização está em segundo plano.

Em especial, as polícias militares, as quais são propriamente ostensivas, observa-se o treinamento de seus agentes fundamentados em subjugação, violência, pressão psicológica e o aniquilamento, resultando na truculência que vimos todos os dias nos noticiários, quando, na origem, a obrigação era de segurança e neutralização.

Arrisco dizer que a desumanização dessa grande massa, inclusive dos fardados, aliada a sensação de poder, retira desses integrantes a percepção de seus semelhantes e de si mesmo.

MPD Dialógico – Por que a sociedade brasileira não assume publicamente o apartheid em que vivemos?

Monique Prado – O apartheid brasileiro está configurado de uma forma bem diferente do que aconteceu nos Estados Unidos e na África do Sul, por exemplo. Isto porque naqueles Estados havia legitimidade e chancela do próprio Estado em termos legais quanto a essa divisão.

No Brasil, esse apartheid acontece no distanciamento entre acesso, oportunidade e ascensão social desencadeando desigualdades de renda, território e espaço político.

Com efeito, mesmo com as árduas conquistas de políticas públicas e sociais, o nivelamento da população, em termos raciais, ainda demanda muito trabalho por parte do Estado Brasileiro, o que certamente só avançará em razão da pressão da sociedade civil e dos movimentos.