CELESTE LEITE DOS SANTOS
14.06.2023 18:03

A pergunta pode parecer desnecessária e até redundante para alguns. Mas na última semana circulou nas redes sociais que havia sido aprovado e sancionado o Projeto de Lei n. 145/2023 do Estado de Roraima de autoria do deputado Isamar Júnior que “estabelece diretrizes para a promoção de ações que visem à valorização de homens e meninos e a prevenção e combate à violência contra os homens”. Parece brincadeira, mas é verdade. A título de exemplo do caráter misógino do projeto podemos citar o parágrafo único do art. 1°: “Para os fins desta Lei, considera-se violência contra homens e meninos todas as práticas e relações sociais fundamentadas no feminismo, na crença da inferioridade de homens e meninos e sua submissão ao sexo feminino”.

Para além da inconstitucionalidade latente do projeto, fica evidente que o patriarcado está longe de chegar ao seu fim, e a igualdade efetiva entre homens e mulheres muito distante de ser alcançada. Em Estados em que a desigualdade de gênero aparece de forma mais mascarada, tal realidade não é muito diferente. Tramita na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei n. 130/2016, de autoria da bancada feminista existente à época que, a despeito de ter sido aprovado em todas as Comissões, cada vez que se ameaça pautá-lo em plenário, imediatamente um ou dois parlamentares do sexo masculino pedem vista, obstruindo a sua votação. O projeto tem por fonte de inspiração a Lei Espanhola de Igualdade Efetiva entre Homens e Mulheres (Ley Orgánica 3/2007, de 22 de março) e a deputada estadual Beth Sahão tem sido uma das defensoras mais ativas de sua aprovação.

O Projeto tem por princípios a igualdade de oportunidades, a não discriminação, equidade e o respeito à dignidade da pessoa humana. Prevê cinco tipo de políticas públicas visando a realização de seus objetivos: ações afirmativas (visam acelerar a igualdade entre homens e mulheres), medidas de participação equilibrada (garante a presença de mulheres em todos os âmbitos de tomada de decisão), medidas de igualdade de oportunidades: aquelas dirigidas a um ou ambos os sexos que pretendem eliminar as diferenças entre homens e mulheres, promovendo a erradicação permanente dos prejuízos de gênero causadora das diferenças, define gênero como o conjunto de ideias, crenças, representações e atribuições sociais construídas em cada cultura tomando por base a diferença sexual e perspectiva de gênero: a metodologia e os mecanismos que permitem identificar e valorar a discriminação, a desigualdade e a exclusão de mulheres que pretende justificar-se com base em diferenças biológicas entre mulheres e homens, assim como as ações que devem empreender-se para atuar sobre os fatores de gênero que permitam avançar na construção da equidade de gênero.

O Instituto Pró Vítima, com base nessas realidades díspares entre o comando constitucional da igualdade e como ela é percebida em nossa sociedade, especialmente por aqueles que ocupam postos de poder e liderança, iniciou pesquisa liderada pela conselheira Luciana Sabatine Neves com base em uma pergunta singela – o que é igualdade para você? O médico neurologista Sérgio Jordi respondeu que igualdade é uma série de condições que deixarão as pessoas literalmente em igualdade para viver. A psicóloga Cátia Sineraro disse que igualdade é conseguir a opinião de outra pessoa e respeitá-la, sem que tenha que ser o que está dentro da sua cabeça. Estamos sempre querendo que as pessoas sejam o que está dentro da nossa cabeça e não o que as pessoas são. A estilista Alecia Assalone disse que igualdade são todas as pessoas do mundo poderem usufruir tudo o que há disponível nele.

O valor “vida” aparece em destaque na maioria das respostas obtidas. Curiosamente, no Estado de São Paulo, segundo dados publicados pela Agência Brasil, o número de crimes cometidos contra mulheres teve forte alta no primeiro trimestre de 2023: o feminicídio experimentou um aumento de 24%, a ameaça cresceu 70,8% e a lesão corporal dolosa, 13,8%.

Fica a pergunta – qual a política despendida à vítima em relação às violências físicas, morais, sexuais e psicológicas que lhe são impingidas diariamente? As vítimas são efetivamente acolhidas pelo sistema SUS-SUS e/ou pelo sistema de justiça? E você, caro leitor, como membro da sociedade, o que faz quando presencia um colega de trabalho sendo injustamente assediado por colegas ou superiores hierárquicos? Silencia para não ser a próxima vítima?

Será que, em vez de nos empenharmos na aprovação de novos e mais rigorosos tipos penais que visam a atingir o fenômeno do crime e o criminoso, não teria chegado a hora de lutarmos pela aprovação de medidas proativas em prol da igualdade em nossa sociedade? Naturalizar a igualdade não teria um efeito mais contundente nas estatísticas criminais do que a banalização da violência existente em nosso país?

Ao lado do eixo do ofensor, existe o eixo da vítima, que é negligenciado pelo poder público e pela sociedade, a despeito do art. 144 da CR determinar que é responsabilidade de ambos os atores sociais.

Na esfera federal tramita com pedido de urgência destinado a Presidência da Câmara dos Deputados o Estatuto da Vítima (PL. 3.890/2020), restando apenas que seja para tanto pautado em plenário. O projeto tem por eixos a prevenção, o apoio e a desvitimização.

Constatado o aumento no número de crimes praticados contra as mulheres, por óbvio que a medida preventiva mais eficaz seria a adoção de estratégias de participação equilibrada de mulheres nos setores público e privado, a adoção de medidas de igualdade de oportunidades no acesso e ascensão a cargos de poder e liderança e ações afirmativas em prol da igualdade efetiva de homens e mulheres. Na contramão do preconizado está em via de ser votada a PEC 18/21 que anistia partidos que não tiverem utilizado os percentuais mínimos de financiamento de campanhas de mulheres e de promoção e difusão da participação política de mulheres.

Feitas essas observações, podemos concluir que vivemos em um estado de anomia social preconizada por Robert K. Merton. Para o grupo social mulheres (independente de etnia, origem e identidade de gênero) não existem normas que garantam o usufruto mínimo do valor vida. Porque não existe vida sem dignidade da pessoa humana.

A meta igualdade é traçada pela Carta Magna, porém tal princípio não parece tão importante quanto o da manutenção do status quo. A conduta desviada dos membros que compõem a sociedade não é exceção, mas o valor vigente na sociedade do risco.

O Poder Legislativo, como uma das instituições que visam a garantia dos princípios insculpidos na Constituição tem falhado no estabelecimento de metas: de igualdade, de solidariedade, de apoio e atenção a vítimas de crimes, desastres naturais e calamidades públicas. Isso ocorre em todos os níveis da nossa federação.

A bem da verdade, não podemos dizer que um dia existiu um pacto social integrativo das mulheres. Porém a sociedade não se sustenta social, moral e economicamente sem o Outro Sexo.

Portanto, a luta contra a desigualdade de gênero é antes de tudo uma luta contra a opressão que impede o nosso progresso civilizatório. O feminismo não é uma oposição a uma identidade sexista/machista como equivocadamente supõe o deputado de Roraima. É um projeto de sociedade, uma proposta de relações sociais entre as pessoas pautada por normas e valores sociais. O conjunto, homens e mulheres, devem conferir dignidade ao sujeito político feminino. Esse o ideário da Lei Espanhola de Igualdade Efetiva de Homens e Mulheres e do Projeto de Lei Estadual n. 130/2016.

Com essas palavras conclamo os nossos leitores a se engajarem na luta pela aprovação do Projeto de Lei n. 130/2016 no Estado de São Paulo e do Estatuto da Vítima (PL 3890/2020) na Câmara dos Deputados.

A liberdade somente pode ser exercida quando há igualdade. Uma sociedade sem regras não sobrevive e não avança no cenário mundial.