Maria Fernanda Dias Mergulhão

O fenômeno tecnológico nas informações impactou a cultura de todos os povos do mundo, já que a celeridade na transmissão do conhecimento, aliada à modicidade dos valores desse serviço, contemplou pessoas de todas as classes sociais brasileiras, ainda que em graus distintos.

Há estatística no sentido de que temos mais telefones celulares do que o número de habitantes, numa média de 1,2 aparelhos por habitante, de acordo com os dados da ANATEL-Agência Nacional de Telecomunicações, indicando que até abril de 2023 foram contabilizados cerca de 251 milhos de telefones celulares. Vale ressaltar que a quase totalidade dos usuários de telefones celulares não se limitam ao uso de uma, hoje, simplória ligação telefônica. Inúmeros aplicativos e redes sociais são oferecidos a esse, por que não, consumidor de serviços em internet, e mesmo pessoas de gerações longínquas já se adequam a essa nova era, cuja tecnologia é alçada ao patamar da indispensabilidade.

Nesse contexto insere-se a denominada “inclusão digital” e a popularização do uso de importantes ferramentas tecnológicas rumo à realização da tão sonhada cidadania em território brasileiro. Afinal, por aqui essa cidadania é exercida de forma compulsória se esgotando, apenas, no momento do voto para eleição de representantes políticos dos Poderes Executivo e Legislativo.

É preciso chamar o povo para participar dos negócios políticos do Estado para que os permanentes índices abissais de desigualdade social sejam atenuados e, por cascata, todos os indicadores de IDH serem contemplados. Todos ganham!

Vergonhosas são as estatísticas baixíssimas de plebiscitos, referendos e projetos de iniciativa popular em todas as unidades federativas após a abertura democrática de 1988. Afinal o sistema vertical interessa a poucos e a nefasta manutenção do poder, sem transparência e sem controle, privilegia quem realmente não tem comprometimento político com a administração da res pública.

Diante dessa realidade no mundo atual, é de suma importância lançarmos os olhos ao passado para extrair importantes vetores através da história brasileira. Nessa linha, a colonização foi realizada e o Estado implementado só muitos anos após o descobrimento do Brasil. Foram séculos de dependência e mandonismos, até afinal, independência.

Sabe-se que o ordenamento jurídico exerce papel importante para o ingresso na cultura de um povo, mas apesar da imperatividade e coercitividade ínsitas às leis, como poderosos instrumentos de ingresso na ordem social. No entanto, as leis não serão exitosas quando utilizadas sem o fomento de campanhas e políticas afirmativas paralelas, já que o distanciamento político do povo brasileiro não é obra do acaso e hoje já se encontra arraigado na cultura popular por séculos de exclusão.

No Brasil, o que se verificou foi um processo de completa ausência e participação da grande massa populacional[1], que a tudo assistia como meros expectadores. Essa inversão mediante estratégica posição de passividade[2] quanto à identificação do verdadeiro titular do Poder deve ser apontada como uma importante causa do atraso no Brasil quando comparado a países também democráticos.

Na história brasileira, a colonização foi realizada e o Estado implementado só muitos anos após o descobrimento do Brasil. Foram séculos de dependência e colonização, até afinal, a independência. Para a formação de qualquer sociedade, e não seria diferente na sociedade brasileira, imprescindível a sedimentação de hábitos e rituais, e mesmo o espírito de formar uma vida comunitária, em que a comuna é o locus que todos precisarão dividir.

Diante do contexto de uma expressiva massa humana alijada do acesso à educação, saúde, transporte, moradia e trabalho de qualidade face os longos anos de exclusão, nos anos atuais, apesar da ferramenta digital constante nos múltiplos aparelhos de telefonia celular, para dar “voz” a essas pessoas para saírem da sombra da invisibilidade pelo exercício da cidadania, o cenário político-social não é muito distinto do que décadas, quiçá tempo maior passado. Políticas públicas de fomento à participação popular nos negócios do Estado devem ocupar pautas, assim como redes de comunicação em massa devem estar envolvidas com a importância da real cidadania como poderoso instrumento para mudar os rumos de uma sociedade desigual.

[1] Nessa linha, clarifica Mitchell: “Rapidamente, sumariada, a história política do Brasil colonial é a história do domínio da elite e de suas atividades no sentido de privar o povo de direitos civis ou privilégios. Até que ponto ia o poder da coroa? Até que ponto ia o poder da aristocracia rural? Quais eram as relações entre duas elites dirigentes? Até que ponto a Igreja e a burguesia comercial partilhavam da distribuição do poder? Que fatores controlava, em grande parte a população escrava e a classe inferior desfavorecida? Na ausência de repressão indiscriminada, por que, na realidade, estava esta última ampla e intimamente ligada aos intermediários do poder? Em que extensão emergiu, no interior de cada uma das classes, um sentido de consciência de classe?” (GARFIELD, Michell, GARFIELD, Mitchell. Estrutura de Classes e Poder Político no Brasil Colonial. João Pessoa: Editora UFPB.1983-p.15).

[2] Havia um divórcio, claro, entre sociedade e o Estado, cuja atuação só era notada, efetivamente, na hora da cobrança de impostos. De resto, colonos administravam seus bens sem grande ingerência externa nas suas atividades e decisões. Criavam, portanto, um governo paralelo, no qual tais práticas ilícitas tomavam parte fundamental no bom andamento dos negócios da colônia. (SCHWARCZ, Lilia Moritz. Bases do Autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Campus. 1982.2011. p.94)

*Maria Fernanda Dias Mergulhão, doutora e mestre em Direito. Mestre em Sociologia Política. Promotora de Justiça MPRJ e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica