MINISTÉRIO PÚBLICO DEMOCRÁTICO e AIRTON FLORENTINO DE BARROS

23.10.2023 18:23  0

Como a justiça nunca é alcançada, seja porque muitos infratores conseguem esconder seus crimes, seja porque a própria pena a que outros são condenados nunca é eficaz para evitar a prática de novos crimes, seja ainda em razão dos frequentes erros judiciários, o ideal seria a condenação dos inocentes por antecipação. É o que ironicamente defende o genial Giavani Papini, em “Gog”.

A polícia brasileira, incluindo a paulista, por exemplo, nunca fez inquérito policial que prestasse.

Uma ou outra investigação, excepcionalmente mesmo, serve de base para justa condenação de algum suspeito.

E a culpa desse estado de coisas, em que a investigação policial ainda é medieval, porque raramente se faz por métodos científicos (a principal prova ainda é a testemunhal), é do Ministério Público e do Judiciário que, ao invés de colocarem um basta nessa situação, preferem chancelar a “não investigação” e continuar condenando pessoas sem prova suficiente.

Um inquérito só é concluído no país com a correta apuração de um crime, por mais grave que seja, quando um juiz, um promotor ou a imprensa trata do caso com mais cuidado.

Do contrário, acontece o que todo mundo sabe.

Em outras palavras, prevalece, como verdadeira, da primeira à última instância judicial, a versão que a polícia registra em seu relatório.

Há um livro de James Ellroy (The Nightwatchman), que se popularizou por meio do filme “Os Reis da Rua”, em que um policial responde a outro: “Só um policial pode fazer isso. Porque a polícia pode fazer o que quiser”. E quando seu interlocutor indaga: “Mas e a verdade?”. Ele responde: “A verdade é o que a polícia põe no seu relatório”.

É exatamente isso que prevalece nas geralmente péssimas investigações da polícia brasileira.

Imagine então nas hipóteses em que policiais são os autores do crime?

Sim, é um salve-se quem puder.

Aliás, nem se trata de alguma novidade, pois isso sempre aconteceu.

Há cerca de quatro décadas, um promotor público (esse era então o nome do cargo) de uma populosa comarca paulista registrou publicamente uma de suas experiências.

A polícia prendia na sexta-feira quem ela queria manter mais tempo preso, porque o auto de prisão em flagrante era conferido pelo Ministério Público e pelo juiz só na segunda-feira.

Justamente numa segunda, examinou ele um daqueles autos de prisão em flagrante e se manifestou pelo relaxamento da prisão dos suspeitos. E se tratava de um ato de coragem porque a opinião pública sempre prefere punir o suspeito mais pela gravidade do fato do que pelas provas conhecidas do crime noticiado, além de com maior frequência dividir os atores da reportagem em policiais e bandidos, como se os primeiros nunca pudessem ser uma coisa e outra ao mesmo tempo.

Eram dois presos, um de 18, acompanhado de outro com 17 anos de idade.

Um só auto de prisão em flagrante com o registro da confissão de vinte graves delitos (assaltos a mão armada) de uma vez.

Notou que aqueles jovens (bandidos ou bodes expiatórios) confessaram haver cometido um assalto em São Paulo, Capital, e outro em Araraquara, no mesmo dia, em horários improváveis por muito próximos (uma hora de diferença entre um e outro), usando como transporte não um avião mas um automóvel comum.

A propósito, tornava-se cada vez mais frequente à época a ocorrência de assaltos a instituições financeiras, com roubos de grandes quantias em dinheiro. Na maioria das vezes, pequena parte do dinheiro era encontrada e apreendida pela polícia, em geral nas mãos de ladrões de periferia, os chamados ladrões de galinha, improváveis agentes autores desses crimes. Tanto que, com o aprofundamento de algumas investigações, apurava-se que se tratava de roubo simulado por gerentes de agências bancárias em coautoria com policiais.

Ao ver o referido auto de prisão em flagrante, patentemente forjado, o então juiz da comarca, sem prejuízo de outras medidas, sugeriu e marcou uma reunião com o delegado de polícia local que, convocado, compareceu.

Afirmou que o sistema levava a isso, explicando que os distritos policiais com mais inquéritos policiais encerrados, numa demonstração de maior produtividade à Secretaria de Segurança Pública, eram beneficiados com recursos materiais e humanos e promoção de seus agentes.

Assim, como a confissão do indiciado era considerada prova cabal da prática do crime, passou a ser também motivo de encerramento de inquéritos.

O certo é que, a partir daquela reunião, os inquéritos policiais passaram a seguir critérios mais rigorosos na comarca, sobretudo porque a confissão isolada do suspeito no inquérito deixou de ser recebida como suficiente para a condenação, que só ocorreria se o interrogatório fosse confirmado por outras provas da responsabilidade do suposto criminoso.

Aliás, tratava-se de medida importante, seja para alterar a filosofia de investigação policial, seja porque, na grande maioria das vezes, a confissão manifestada no inquérito policial não se confirmava em juízo.

Recentemente, aposentado do Ministério Público, já como advogado, lógico, o mesmo promotor de justiça foi procurado para defender de graça um pobre de um técnico de vendas que, conduzindo seu veículo utilitário adquirido em longas parcelas como instrumento de trabalho, foi interceptado abruptamente, com manobra ilegal, numa importante rodovia, por veículo que, para o seu azar, era dirigido por um policial militar.

Ele, o representante de vendas, e não o policial militar, verdadeiro responsável, acabou sendo condenado por crime doloso de trânsito (lesão corporal gravíssima), a uma pena de mais de 4 anos de reclusão.

Viu então o agora advogado que as coisas da polícia continuavam na mesma.

Seu escritório nem atuava na área criminal. Mas topou assumir a defesa por uma razão: tratava-se de uma injustiça patente, da condenação de um inocente, eleito bola da vez para responder no lugar de um policial militar, repita-se o verdadeiro causador imprudente do citado acidente de trânsito.

Ocorre que o também PM encarregado do registro da ocorrência, depois preso pela prática de diversos crimes, providenciou para que seu colega escapasse da responsabilidade, alterando o sítio dos fatos para prejudicar a perícia, omitindo fatos relevantes, escolhendo as testemunhas convenientes no inquérito à sua versão.

Fez como o policial que após matar alguém coloca uma arma na mão da vítima, já estendida no chão, para simular troca de tiros e, assim, facilitar a aceitação da tese de legítima defesa.

Conforme a lei do trânsito, aplicável à hipótese, o crime de trânsito decorrente de acusação de excesso de velocidade só se comprova por registro de equipamento tecnológico (radar, vídeo) aferido pelo Inmetro. O próprio Código de Processo Penal prevê expressamente que os crimes que deixam vestígio só podem ser comprovados por perícia, que na hipótese não ocorreu.

Pois bem. Ministério Público e Judiciário, aceitando mais um entre tantos inquéritos policiais mal conduzidos, entenderam bastar a aferição da velocidade pela mera impressão visual de testemunha.

Aliás, a única prova material da dinâmica do mencionado acidente era um croqui com registro das marcas de frenagem de cada um dos veículos envolvidos, diametralmente contrária à acusação. Mas esse único forte e concreto indício das causas do acidente, que certamente, numa investigação séria, levaria à absolvição do acusado, nem foi analisado.

Nada adiantou. O policial militar encarregado do registro da ocorrência que, na audiência judicial, compareceu escoltado por estar então preso pela prática de diversos crimes, como corrupção, uso ilegal de arma com numeração raspada, tráfico de drogas e até violência doméstica, depôs como testemunha, mantendo a falsa versão que livrou seu colega, verdadeiro autor do crime, da condenação.

Injustiça qualificada e manifesta, feita e confirmada.

Ao que parece, vale mais manter o “sistema”, ainda que condenando um inocente, do que fazer justiça.

A verdade, na visão do Judiciário brasileiro, infelizmente, continua sendo a que a polícia registra em seu relatório.

Nem poderia ser diferente: “As leis e as Cortes de Justiça não diferenciam em nada das teias de aranha. Prendem os fracos e pequeninos, mas são destroçadas pelos fortes e poderosos” (SOLON, 638-558 a.C).

O que fazer?

Ao responder essa indagação, afirmou o citado causídico estar pensando em fazer como o advogado gaúcho Serafim Machado, autor do livro “Por Que Acredito em Lobisomem”, contando em obra que espera seja em breve publicada os casos de corrupção e erro judiciário em que atuou como promotor de justiça e advogado.

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AUTORIA

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AIRTON FLORENTINO DE BARROS Airton Florentino de Barros, advogado e professor de Direito Comercial. Fundador e ex-presidente do MPDemocrático

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