A entrevistada do mês é a Dra. Liliana Buff de Souza e Silva, procuradora de Justiça aposentada e sócia fundadora do Movimento Ministério Público Democrático. Foi também assistente do Ministério Público no processo do sequestro de Washington Olivetto e foi a primeira procuradora de Justiça candidata à presidente da APMP, em 1994, com a chapa “Democracia e Independência”. Liliana ingressou no Ministério Público em 1980, em cujo concurso foram aprovados 70 promotores de Justiça, entre os quais apenas 12 mulheres.

“As relações de gênero, ainda presentes em nossa cultura, determinam papéis considerados masculinos e femininos perante a sociedade. Tais relações criam estereótipos que dificultam a ascensão das mulheres a cargos de proeminência. Assim, ainda há sub-representação flagrante das mulheres, de ordem estrutural, em todos os altos escalões do mercado de trabalho, quer no setor privado, quer no setor público, no Congresso Nacional, no Poder Executivo, nos Tribunais Superiores”, explica a sócia fundadora do MPD.

Confira a entrevista completa abaixo:

1. Por que escolheu atuar no Ministério Público e quais as dificuldades enquanto mulher, especialmente no início de sua carreira, nos anos 1980?

Em 1968, ingressei na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Desde o início do curso, o campo jurídico que despertou meu maior interesse foi o do Direito Penal. Desta forma, como o Ministério Público tem por função institucional, exclusiva e primordial, a promoção da ação penal pública, a defesa dos interesses indisponíveis das pessoas, que são valores básicos para a convivência social, entendia atraente e relevante a função do Promotor de Justiça em defesa da sociedade. Com essa perspectiva, pensei em ingressar na carreira do Ministério Público, o que realizei em 1980.

A carreira do Ministério Público de São Paulo era integrada basicamente por homens. Considerada profissão tipicamente masculina, contava até 1978 apenas com 14 mulheres em seus quadros, que ingressaram na carreira homeopaticamente, ao longo de 33 anos, desde 1946 até 1979, ano em que foram aprovadas de uma só vez 6 mulheres, e em 1980 foram aprovadas 12. (Vide ao final dessa pergunta “Quadros de Ingresso de Mulheres no MPSP de 1946 até 1980”). Mas a progressiva inserção de mulheres no mercado de trabalho e seu crescente acesso nas universidades já era então fato sócio-econômico inconteste e inelutável.

Assim, apesar da relutância em se admitir mulheres nos altos cargos das carreiras públicas, tais como Ministério Público, Magistratura, Diplomacia, até então dominadas por homens, já não se poderia mais conter a participação feminina nas carreiras de Estado.

Basta verificar, como explicitado acima, que até 1980 havia somente 20 mulheres no MPSP, ano em que ingressaram outras 12, mas até então não havia nenhuma mulher na Magistratura Paulista, onde as primeiras três vieram logo a seguir, neste mesmo ano.

Nesse contexto, em 1980 no concurso que fiz 12 mulheres ingressaram de uma só vez no MPSP, o que causou certa perplexidade, a ponto de, à época, comentários de corredor se referirem com grande preocupação à invasão de mulheres no MPSP, o que poderia provocar desprestígio à Instituição. Esta era a mentalidade então dominante!

Na entrevista pessoal que se seguiu ao meu Exame Oral no Concurso, um dos integrantes da banca levantou como óbice para minha aprovação o fato de eu ser casada com um Magistrado do TJSP, pois lhe causava insegurança e hesitação a ideia de como eu conseguiria  conciliar minha carreira com a do marido, ainda com dois filhos pequenos, pressupondo minha incapacidade de gerir o próprio destino. Certamente, essa pergunta jamais seria dirigida a um homem, pois não veriam problema no fato de a esposa segui-lo, como se fôssemos sombra do marido. Felizmente, nos dias de hoje, há muitos casais nestas carreiras, já superado entrave existente naquela época. E lá se vão 40 anos, quando ainda era inusitado uma Promotora de Justiça casada com Juiz de Direito.

Conciliar a vida pessoal e a maternidade com o trabalho foram as maiores dificuldades que enfrentei no início, especialmente pela natural e necessária movimentação da carreira para Comarcas eventualmente distantes da minha residência.

Apesar de no âmbito interno haver igualdade de salário e mesmas oportunidades de promoção, ainda sentíamos velado, sutil preconceito, por não ser Promotor um cargo destinado a mulheres. Éramos vistas como auxiliares de Promotores, inclusive pelo público que atendíamos, como se não tivéssemos capacidade e qualificação para ocuparmos cargos mais elevados. Contudo, este cenário está mudando, em que pesem muitos obstáculos a serem vencidos ainda. Basta verificar quão poucas mulheres atingem posição de proeminência na Administração Superior do MPSP. O número de mulheres decresce na medida em que os cargos têm maior visibilidade e prestígio, não refletindo a composição da carreira, atualmente bem mais simétrica.

As relações de gênero, ainda presentes em nossa cultura, determinam papéis considerados masculinos e femininos perante a sociedade. Tais relações criam estereótipos que dificultam a ascensão das mulheres a cargos de proeminência. Assim, ainda há sub-representação flagrante das mulheres, de ordem estrutural, em todos os altos escalões do mercado de trabalho, quer no setor privado, quer no setor público, no Congresso Nacional, no Poder Executivo, nos Tribunais Superiores.

QUADRO DE INGRESSO DE 14 MULHERES NO MPSP ATÉ 1978:

01- 1946 Zuleika Sucupira Kenworthy

02- 1954 Maria José Del Papa Zacharias  

03- 05/07/1957 Maria Yvone Domingues Coccaro

04- 08/05/1964 Wilma Terezinha Góes Maurício

05- 08/02/1967 Luzia Galvão Lopes da Silva

06- 08/02/1967 Isabela Gama de Magalhães Gomes

07- 08/02/1967 Tilene Almeida de Morais

08- 30/01/1968 Deiza de Paula Leite Rocha

09- 31/03/1970 Nair Ciochetti de Souza

10- 20/09/1972 Regina Helena da Silva Simões Palma

11- 05/02/1973 Maria Cláudia de Souza Foz

12- 13/01/1976 Marilisa Germano

13- 13-09-1977 Carmen Beatriz Aparecida Ungaretti Selingardi Guardia

14- 05/05/1978 Maria Lucia Faleiros Moraes Alves

QUADRO: INGRESSO DE 6 MULHERES NO MPSP EM 10/10/1979:

15- Rosa Maria Borrielo Barreto de Andrade Nery 

16- Ana Lucia Mutti de Oliveira Sanseverino

17- Heloísa Antonia Barreiros de Souza

18- Ana Maria Napolitano de Godoy Mistura

19- Zelia Maria Ruivo Leal

20- Flora Maria Borelli Gonçalves

QUADRO: INGRESSO DE 12 MULHERES NO MPSP EM 11/09/1980:

(ordem de nascimento)

21- 16/05/1936 Hilda Cruzelina Carvalho Piva

22- 26/08/1939 Adelina Bitelli Dias Campos

23- 18/10/1944 Rosa Maria Pistoresi Garcia

24- 18/02/1945 Rosanis Fernandes Polo

25- 05/06/1946 Renata Helena Petri Gobbet

26- 22/11/1948 Marta de Paula Fernandes

27- 18/11/1949 Maria Cuervo da Silva Vaz Cerquinho

28- 25/04/2950 Liliana Buff de Souza e Silva

29- 16/02/1951 Valderez Deusdedit Abbud

30- 04/08/1951 Benedita Moura dos Santos Azevedo

31- 11/02/1955 Ines Makowski de Oliveira Ioppi 

32- 08/03/1956 Virginia Akie Morikawa

2. Quais pontos da sua carreira a Sra. destacaria?

Os desafios de ordem familiar são mais sentidos pelas mulheres do que pelos homens no trabalho em geral. Dificuldades enfrentadas pela condição da mulher são até maiores em carreiras pré-concebidas como masculinas. É ainda necessário esforço coletivo para a necessária ruptura da desigualdade de gêneros.

No curso da minha carreira, destaco minha atuação em primeiro grau: (a) na Promotoria de Execuções Criminais, onde sempre se deve ter presente a dimensão humana dos encarcerados, bem como a busca da reinserção social deles; e (b) no Tribunal do Júri de Santo Amaro, onde atuei por 7 anos, experiência gratificante, com predomínio da defesa da intangibilidade da vida humana.

E, em segundo grau, como Procuradora de Justiça, destaco o grande aprendizado de participar de dois pleitos, (a) ao encabeçar chapa para a Associação Paulista do Ministério Público APMP, em 1994; (b) ao concorrer para o Conselho Superior do Ministério Público, que tive a honra de integrar em 1996/97; e (c) assim como a excepcional oportunidade de trabalhar na Competência Originária em 1998/99, no Gabinete do Procurador Geral de Justiça.

3. A senhora foi a primeira candidata à presidência da APMP. Como foi essa experiência?

Em 1994, representando um grupo expressivo de integrantes do MPSP, que já participara de outros pleitos associativos, sempre pugnando pelo aprimoramento institucional, por ideais democráticos, com a participação de todas as correntes de pensamento nos rumos da classe e da própria Instituição, encabecei a Chapa de oposição, integrada por outros combativos colegas.

Nossa Chapa “Democracia e Independência” concorreu com a Chapa da situação, liderada por Washington Epaminondas Medeiros Barra, colega que já participava da APMP, muito querido e admirado pela classe, que fez história na vida associativa.

Portanto, foi uma campanha muito difícil. Mais ainda porque eu era a primeira mulher a concorrer a um cargo expressivo na representação da classe no MPSP, o maior do Brasil.

Foi uma oportunidade rica, em que a confiança muito me honrou e a experiência me engrandeceu.

Aqui, igualmente, voltamos a debater a igualdade de gêneros e sentir os desequilíbrios existentes entre homens e mulheres.

A crítica ácida que nossos adversários dirigiam à nossa Chapa era exatamente por ter uma mulher na cabeça, e, pior, casada com “um inimigo”, ou seja, um magistrado!

Falavam atrocidades sobre entregarem o comando da APMP a uma mulher e, mais grave, casada com Juiz, a significar que fosse entregar ao “marido”, pelas minhas mãos, a chefia governativa, a administração, a condução da vida associativa dos membros do Ministério Público.

Houve amargos e depreciativos comentários à minha condição de mulher, como se mulher fosse incapaz e incompetente de administrar entidade de classe e, mais depreciativo, que fosse delegar ao homem da casa seus deveres profissionais.

Triste enfrentar todos e tantos preconceitos que, ao menos, deixaram a sutileza para se expressarem livremente. E quando o preconceito vem às claras é mais fácil combatê-lo e superá-lo.

Causa estranheza, no entanto, o fato de, até hoje, nenhuma outra mulher dispôs-se a candidatar-se para presidir a APMP. Somos todas lideradas por homens há mais de 80 anos, quando já temos centenas de mulheres atualmente na Instituição.

Asseguro, porém, que saí engrandecida dessa candidatura, assim como, espero, o próprio grupo político a que eu pertencia. Foi notável esta experiência.

4. A senhora atuou no processo do sequestro de Washington Olivetto. Qual foi a importância deste caso?

Sob o ponto de vista da segurança pública, um caso gravíssimo, um crime hediondo, que mereceu severa reprovação do Poder Judiciário.

Na ótica privada, do sofrimento da vítima, um crime devastador, que atingiu um expoente publicitário brasileiro, de fama mundial, que revolucionou a publicidade, responsável por campanhas históricas e icônicas, com premiados trabalhos no Brasil e no mundo.

Permanecer sequestrado 53 dias, confinado em cativeiro exíguo, nas mãos de criminosos profissionais …é um horrível pesadelo.

Um caso paradigmático de organização criminosa internacional.

5. Quais recordações a senhora têm do período da ditadura militar? E como o Ministério Público deve exercer seu papel de guardião da democracia?

Em março de 1964, quando o golpe instaurou a ditadura militar no Brasil, eu era apenas uma adolescente, com 14 anos de idade.

No colégio em que eu estudava, Colégio Estadual Dr. Otávio Mendes, em Santana, havia excelentes professores, que nos ensinaram a refletir, com olhar na filosofia, história e literatura. Consequentemente, só poderíamos ter visão crítica de regimes ditatoriais, qualquer fosse seu colorido ideológico.

Sempre quis estudar Direito e, em 1968, ingressei na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

Este ano de 1968 foi um ano terrível, convulsionado no Brasil inteiro (e no mundo), com intenso movimento estudantil, sobretudo universitário, em prol da democracia e das liberdades públicas. Nossa Faculdade de Direito foi tomada pelos estudantes em 23/06/1968, que pugnavam pelo fim da censura, pela diminuição das desigualdades sociais, pelo pleno restabelecimento do regime democrático.

Tais movimentos que agitavam considerável parcela da sociedade, acirrou os ânimos dos militares golpistas e da direita de tal forma que o ano de 1968 terminou, com a promulgação do Ato Institucional nº 5 –AI- 5, de 13/12/1968, que impôs o total fechamento do sistema e restringiu drasticamente a cidadania e as liberdades públicas, com aumento da repressão policial-militar.

Seguiram-se anos de chumbo e de trevas, em que falar de liberdade e de direitos humanos era crime contra a Segurança Nacional.

Por outro lado, driblando o sistema repressivo, as artes foram os meios pelos quais pessoas talentosas puderam expressar suas opiniões e, assim, a cultura teve notável desenvolvimento, quer no jornalismo, na música, na pintura, na literatura, no teatro.

Tão abominável é a supressão da liberdade nos regimes autoritários, que chega a ser perversidade e estultice, em pleno século XXI, ainda ter  manifestações em prol de ruptura de instituições democráticas e do sistema de justiça, e pelo retorno da ditadura militar.

A sociedade não pode tolerar a pregação dessas ideias de ódio e de sangue.

Jamais esqueceremos a perda de vidas, a prisão de amigos, a tortura de jovens, a matança indiscriminada e a cortina de fumaça sobre assalto à coisa pública, causadas pelo regime ditatorial. E temos de combater com vigor qualquer atentado contra o Estado Democrático de Direito e o retorno a esse escuro e infeliz período da história. A luta pela liberdade nunca deve ser esquecida. Repudiamos veementemente qualquer ameaça à democracia.

6. Quando e por que você decidiu se associar ao MPD?

Sou sócia fundadora do MPD e me orgulho disso.

Em 1991, um grupo de membros do MPSP, insatisfeito com a limitação da liberdade de expressão no próprio Ministério Público e imbuídos do propósito de zelar pela democracia, fundou o MP Democrático.

As ideias consagradas na Constituição Federal de 1988, pelas quais esse grupo sempre batalhou, sempre defendeu e sempre praticou, exigiam atenção e vigilância permanentes, por meio de diálogos, ações sociais, debates com a comunidade, palestras educativas sobre direitos e garantias individuais, sempre visando à preservação do Estado Democrático de Direito.

7. Qual a importância de um movimento como o Movimento do Ministério Público Democrático?

A importância do MPD está na sua luta permanente e contínua pela democracia e contra o autoritarismo. Não podemos arrefecer nunca.

8. Quais devem ser os objetivos atuais do Ministério Público?

O Ministério Público sempre deve mirar a defesa da sociedade, combater o crime, a corrupção, a violência, defender a legalidade democrática e proteger os mais desassistidos, os mais frágeis e os vulneráveis. Estas são as suas funções precípuas.

9. Quais são os pontos fortes da Instituição e onde precisa melhorar?

A independência e a integridade de membros do Ministério Público são o ponto forte da Instituição, bem como o idealismo e a combatividade de seus integrantes em prol da promoção da Justiça, da legitimidade democrática das leis e do aparato Judiciário.

Por outro lado, a Administração Superior do Ministério Público deve aparelhar os profissionais com meios e instrumentos necessários, para que possam bem desempenhar suas funções, com eficácia e eficiência no cumprimento dos objetivos funcionais.

10. Se você pudesse dar um conselho para um jovem formado em direito, qual seria?

Estude os princípios básicos do Direito, maior conquista da civilização.

Escolha com serenidade e comprometimento sua área de atuação e a ela se dedique com esforço e energia. Quem trabalha no que gosta, diverte-se, alegra-se, realiza-se. Foi o que fiz e foi recompensador.