Juizado criminal presidido por Delegado de Polícia é afronta, diz MPD
POR FREDERICO VASCONCELOS
15/07/15 14:45
O Movimento do Ministério Público Democrático (MPD) divulgou nota pública em que repudia a PEC 89, que propõe a criação de juizados de instrução criminal sob a presidência de Delegados de Polícia.
Para o MPD, é “elementar que a atividade de polícia judiciária auxilia o sistema de justiça, e não o contrário”. Além disso, no Brasil os Delegados de Polícia estão subordinados ao Poder Executivo”.
Segundo o movimento, a PEC 89 cria “inadequada concentração de poderes, afrontosa também às prerrogativas dos advogados e direitos dos investigados e representa histórico e indesejado retrocesso para a persecução penal no Brasil”.
Eis a íntegra da manifestação:
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NOTA PÚBLICA CONTRA A PEC 89/2015, UMA AFRONTA AO ESTADO DE DIREITO.
O Movimento do Ministério Público Democrático, associação nacional de membros do MP sem fins econômicos nem corporativos, vem a público externar seu repúdio à PEC 89, apresentada no último dia 9 de julho pelo Deputado Hugo Leal, que propõe a criação de juizados de instrução criminal sob a presidência de Delegados de Polícia.
Desde o século XVIII o mundo vem adotando a fórmula de Montesquieu, tripartidora do poder – Executivo, Legislativo e Judiciário, num sistema de freios e contrapesos, cabendo aos magistrados dar concretude à vontade abstrata da Lei e neste espírito a CF consagra como garantia fundamental a inafastabilidade da apreciação judicial de lesões a direitos, sendo que a PEC 89 propõe indesejável retrocesso ao sistema inquisitorial em detrimento do contraditório.
Os juizados de instrução existentes em países europeus como a França e Itália tem em sua concepção a figura de juiz de instrução presidente, integrante da Magistratura, sendo elementar que a atividade de polícia judiciária auxilia o sistema de justiça, e não o contrário (Delegado de Polícia presidindo sendo auxiliado por magistrados). Além do que, pelo nosso sistema, Delegados de Polícia estão subordinados ao Poder Executivo.
Além disso, a presença do Ministério Público no Brasil, tem como marco histórico a Constituição Federal de 1988, que incumbe o MP da concretização da cidadania, atribuindo-lhe a promoção da ação penal pública, além da defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dentro da missão maior de proteção da ordem jurídica e do regime democrático.
No plano internacional, a construção do Estatuto de Roma, em 1998, fruto de esforços mundiais foi absorvida pelo Brasil pelo Decreto 4388 de 25/09/2002, do qual se originou o Tribunal Penal Internacional, que considera o poder de investigação criminal do MP uma das maiores conquistas para a civilização, reconhecido pelo Congresso Nacional, por 430×9 ao rejeitar em 2013 a PEC 37, que propunha o monopólio do poder de investigação criminal para a Polícia e reafirmado em maio último pelo STF ao julgar o RE 593727, com Repercussão Geral, reconhecendo e declarando por 10×1 o poder de investigação criminal do Ministério Público.
A PEC 89 afronta o direito fundamental ao julgamento, os compromissos internacionais dos quais o Brasil é signatário e as recentes deliberações do Congresso e STF, propondo a criação de supostos juizados de instrução criminal sob a presidência de Delegados de Polícia, subvertendo princípios elementares do sistema político brasileiro e do devido processo legal, propondo inadequada concentração de poderes, afrontosa também às prerrogativas dos advogados e direitos dos investigados e representa histórico e indesejado retrocesso para a persecução penal no Brasil.
Confira a publicação no blog do Frederico Vasconcelos, colunista da Folha de S. Paulo.
As origens do cargo de Delegado de Polícia
As raízes do cargo de Delegado de Polícia remontam ao período brevemente anterior à chegada da Corte Portuguesa ao Brasil.
Com o intuito de conter a criminalidade em Lisboa (difundida nos versos do cancioneiro popular: “todas as noites se cometem tantas mortes e roubos, que, pelo hábito, já parecia que matar era cortesia e furtar modéstia”), o Rei D. José I de Portugal cria o cargo de Intendente Geral da Polícia da Corte e do Reino, pelo Alvará de 25 de junho de 1760, que adotou como modelo a “Lieutenance Générale de Police de Paris”.
Este modelo surgiu com o Decreto de 15 de março 1667, do Rei Luís XIV da França, que estabeleceu a criação de um cargo de Magistrado com competência exclusivamente de polícia, separada da função de Justiça contenciosa e distributiva, e equiparado às competências do Magistrado Civil e do Magistrado Criminal (“le Lieutenant Civil et le Lieutenant Criminel”).
Para fins da presente análise, as principais características da Intendência Geral da Polícia foram:
1) a separação entre a Justiça contenciosa e a Policia da Corte e do Reino;
2) a nomeação pelo Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino (cargo semelhante ao atual Primeiro-Ministro);
3) cargo com a graduação, autoridade, prerrogativas e privilégios de que gozavam os Desembargadores do Paço;
4) jurisdição predominantemente criminal;
5) os Corregedores e os Juízes do Crime estavam sob sua subordinação.
Para as Vilas e as Províncias, era possível a nomeação de representantes, chamados de Delegados e Subdelegados do Intendente ou da Intendência.
Ainda que se diga que “o papel do Intendente Geral da Polícia separa-se desde daí do papel do juiz e passa a ser mais administrativo”, é possível concluir, pela leitura de seu ato de criação, que foi conferida à instituição o exercício de funções judicantes. Ressalte-se que a Teoria da Tripartição dos Poderes de Montesquieu havia sido elaborada há pouco mais de dez anos.
Com a fuga da Família Real Portuguesa para o Brasil, em março de 1.808, foi criada a Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil pelo Alvará de 10 de maio de 1808, “da mesma forma e com a mesma jurisdicção que tinha o de Portugal, segundo o Alvará da sua creação de 25 de junho de 1760, e do outro de declaração de 15 de janeiro de 1780”.
Deveria ser nomeado para o cargo de Intendente Geral da Policia da Corte e do Estado do Brasil um Desembargador do Paço, com status de Ministro de Estado.
Segundo Franco Perazzoni, “o intendente podia autorizar outra pessoa a representá-lo nas províncias, surgindo desta atribuição o uso do termo “delegado” no Brasil. Este “delegado” exercia, contemporaneamente, funções típicas de autoridade policial (tanto administrativa como investigativa) e judiciais”.
Com a promulgação da Constituição do Império de 1.824, em atendimento a seu artigo 162, a Lei de 15 de outubro de 1827 criou a figura do Juiz de Paz, para “cada umas das freguezias e das capellas filiaes curadas”, mediante eleições. Dentre suas competências, previstas no artigo 5º, a lei lhe conferia poderes de investigação criminal (§§ 7º, 8º, 9º, 10º).
A Lei de 6 de junho de 1831 torna mais nítida sua natureza policial, pois confere ao Juiz de Paz a “punição de todos os crimes de Polícia” (artigo 5º), “autoridade cumulativa (…) sobre os crimes policiaes” (equiparados à atuais contravenções penais), e “a nomeação de Delegados em seus distritos” (artigo 6º).
O Código do Processo Criminal de 1832 passou a prever (artigo 6º), nas cidades populosas, a figura do Chefe de Polícia, a ser exercido por um dos Juízes de Direito do local, cargo privativo de bacharel em Direito (artigo 44); ou seja, estruturava a polícia como um órgão do Poder Judiciário. Sua criação acarretou a extinção do cargo de Intendente Geral da Polícia e do Delegado do Juiz de Paz.
É importante mencionar que o Decreto de 29 de março de 1833, ao regular o cargo de Chefe de Polícia, estabeleceu sua ascendência sobre o Juiz de Paz, que devia lhe participar “os acontecimentos extraordinarios, que interessem á segurança e tranquilidade publica, e quaesquer outros, que demandem promptas providencias, informando-o da existencia de quaesquer ajuntamentos illicitos, ou em que houver perigo de desordem” (artigo 2º).
A figura do Delegado de Polícia, como conhecemos nos moldes atuais, começou a se desenhar com a reforma do Código de Processo Criminal pela Lei 261, de 03 de dezembro de 1841. Esta norma previu a estruturação da polícia em Chefe de Polícia, Delegados e Subdelegados. E manteve a escolha do primeiro entre os Desembargadores e Juízes de Direito (bacharéis em Direito, na forma do artigo 24).
O Regulamento nº 120, de 31 de janeiro de 1842, que regulou a execução da parte policial e criminal da Lei nº 261 de 3 de dezembro de 1841, pela primeira vez fez a distinção entre polícia administrativa e polícia judiciária. Destaque-se o seu artigo 26, que estabeleceu que os Delegados deveriam ser propostos “d’entre os Juizes Municipaes, de Paz, Bachareis formados, ou outros quaesquer Cidadãos”. Ou seja, preferencialmente entre os bacharéis em Direito.
Este regulamento, ainda, atribuía à Polícia e aos Juízes Municipais o procedimento de formação de culpa (artigo 262), instrumento preparatório para a acusação criminal, que fornecia ao Juiz de Direito os elementos para se conhecer a existência, a natureza e as circunstâncias do delito, assim como seu autor. A formação de culpa pode ser considerada a precursora do inquérito policial.
A Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, que alterou disposições da Legislação Judiciaria, e foi regulada pelo Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, manteve a nomeação do Chefe de Polícia entre os Magistrados, doutores ou bacharéis de Direito.
Promoveu-se a separação entre Polícia e Justiça, ao se estabelecer que o Magistrado que exercesse o cargo de Chefe de Polícia não gozaria dos mesmos predicamentos da Magistratura, apesar de se manter na respectiva lista de antiguidade.
Restringiu a atribuição dos Chefes, Delegados e Subdelegados de Polícia ao preparo dos processos crimes, procedendo as diligencias necessárias para descobrimento dos fatos criminosos e suas circunstâncias. A formação de culpa passou a ser instrumentalizada pelo inquérito policial, criado pelo Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, e regulado em seus artigos 38 a 44.
É digno de nota que a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, em seu artigo 34, parágrafo 23, possibilitou aos Estados legislar sobre Processo Penal.
A Lei Estadual nº 979, de 20 de dezembro de 1905, que reorganizou o Serviço Policial no Estado de São Paulo, estabeleceu que os cargos de Delegado de Polícia de primeira, segunda e terceira classes eram privativos de bacharéis em Direito, e que estes tinham preferência aos cargos de quarta e quinta classes.
Finalmente, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, devolveu à União a competência privativa para legislar sobre direito processual, em seu artigo 5, inciso XIX.
Em razão desta previsão constitucional, foi promulgado o Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941, o Código de Processo Penal em vigor, que confere à Autoridade Policial a presidência do Inquérito Policial, peça destinada à apuração das infrações penais e da sua autoria.
Neste momento de análise, é importante salientar que a atividade policial, especialmente a Polícia Judiciária, entendida como a função investigativa de apurar a existência e a materialidade das infrações penais e a respectiva autoria, surgiu como um desdobramento da atividade judicante, em razão da necessidade de se separar as funções de Polícia e de Justiça.
No Brasil, surgiu e se desenvolveu a figura do Delegado de Polícia, cargo privativo de bacharel em Direito, cuja função é considerada de natureza jurídica. Exerce cargo de autoridade. Nos dizeres de Hélio Bastos Tornarghi, “a autoridade, dentro de sua esfera de atribuições, não pede, manda”. As autoridades “exercem em nome próprio o poder de Estado. Tomam decisões, impõem regras, dão ordens, restringem bens jurídicos e direitos individuais, tudo dentro dos limites traçados por lei”.