Por Beatriz Helena Ramos Amaral

Extrair, explorar, devastar. A combinação desses verbos, prática corrente nas sociedades modernas, raramente conduz a bons resultados. Algumas vezes, porém, o descuido, o descaso e a leviandade elevam-se a um grau máximo, gerando inconcebível irresponsabilidade, da qual advém destruição de proporções gigantescas. Nem sempre o extrativismo caminha neste sentido. Mas, a análise de fatos históricos mostra que a desmedida exploração de “recursos naturais”, em desenfreada obsessão por lucros, além de conduzir a um esgotamento desses recursos, atenta de modo feroz contra o meio ambiente, reduz a qualidade de vida da população e, frequentemente, se faz acompanhar do desprezo pelas regras de proteção à segurança dos trabalhadores. Entre os resultados, vidas dizimadas, terras arrasadas, rios poluídos, sistemas ecológicos
invadidos e destruídos e danos psicológicos e sociais a comunidades
inteiras. Exemplos nefastos desses resultados pudemos assistir, no Brasil, em um período de três anos. Refiro-me, obviamente, ao rompimento das barragens situadas nos municípios de Mariana (barragem de Fundão) e de Brumadinho (mina do Córrego do Feijão), em Minas Gerais, pertencentes à empresa Vale.

Vale a pena registrar e relembrar que o rompimento da barragem
da mina Córrego do Feijão, em 25 de janeiro atirou, com velocidade e
força, 12,7 milhões de m3 de rejeitos tóxicos de minério na cidade de
Brumadinho, engolindo pessoas, casas, vidas, e invadindo a bacia do Rio Paraopeba. Vale lembrar que a ocorrência não foi o primeiro
rompimento de barragem de mina da mesma empresa. Há três anos o
país a assistiu a fato da mesma natureza a macular a bela cidade histórica de Mariana. Sobre a irresponsabilidade que ora se reitera, e com ainda maiores proporções, incidem normas de Direito Penal, Direito Civil, Direito Ambiental e Direito do Trabalho.

As primeiras focalizam as causas do evento, a ação de sujeitos determinados, o nexo de causa e efeito entre ações ou omissões e o resultado lesivo, a modalidade da culpa, a negligência, a imperícia, a imprudência, o dolo eventual e trata da postulação, pelo Ministério Público, e da aplicação, pelo Poder Judiciário, das sanções penais. As normas civis cuidam da responsabilidade civil, do ressarcimento de danos causados. Cada área jurídica citada regula um aspecto da gravíssima ocorrência e sua repercussão em tantas áreas do Direito é, por si só, índice da intrincada teia de consequências da destruição do dique principal da barragem.

Um ponto visível na reincidência da omissão dos responsáveis pela
segurança do complexo de mineração, comum aos dois rompimentos (o
de Mariana e o de Brumadinho): a barragem por alteamento a montante. Cuida-se de modelo de estrutura que, de uma certa forma, potencializa o risco, eleva-o a grau mais alto. Importante realçar a potenciação do risco.

Eis, a propósito, a palavra esclarecedora e sempre lúcida do ensaísta José Miguel Wisnik, que acaba de lançar o livro “A Maquinação do mundo”, estudando as relações entre a obra de Carlos Drummond de Andrade e a mineração realizada no Pico do Cauê. Wisnik relembra os muitos embates entre o escritor e a Companhia Vale do Rio Doce (nome original da Vale). Em entrevista ao jornalista Marcos Augusto Gonçalves, na Folha de São Paulo, afirmou Wisnik: “Barragens de alteamento a montante, em que barreiras de rejeitos se apoiam em barreiras de rejeitos que se apoiam em barreiras de rejeitos, são como castelos de cartas, sempre sujeitos a cair. Um laudo, nesse caso, é autodemonstrativo: serve mais para assegurar a si mesmo do que para garantir a segurança das barragens, que são muitas”.

Nítida a maior espessura da violenta onda de lama que soterrou
vidas, famílias, sonhos e esperanças. Segundo o Porta-Voz do Corpo de
Bombeiros, a velocidade da lama provavelmente tenha alcançado 80
km/h. A opção de construir barragens com a técnica do alteamento está
entre as ações a serem investigadas do ponto de vista do nexo causal
entre sua prática e o resultado a que o país assistiu. O método de
alteamento a montante é mais econômico, por isso, foi escolhido. A
obsessão cega pelo lucro se sobrepõe à prudência que deveria reger a
exploração de minérios. O belo Pico do Cauê, tão cantado por Drummond em sua obra poética, foi aniquilado. As ocorrências trágicas alcançam os limites do absurdo.

O Ministério Público Federal recomendou que o Ibama, a Secretaria
do Meio Ambiente do Estado de Minas Gerais e a Agência Nacional de
Mineração não concedam novas licenças ambientais para barragens com alteamento a montante. Concomitantemente, alerta para a necessidade da apresentação de um plano de gerenciamento dos resíduos sólidos e da contratação de seguros para controle de danos a terceiros e ao meio ambiente. No âmbito do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, o grupo que apura as circunstâncias da tragédia e também trata da assistência às vítimas, além de calcular a totalidade de prejuízos, para cobrar ressarcimento à mineradora, é formado por 19 Promotores de Justiça Criminais, do Meio Ambiente, da Infância e da Juventude, da Saúde e de Direitos Humanos.

Dos informes fornecidos pela mineradora, consta que os piezômetros
(aparelhos destinados a medir pressões estáticas ou a compressibilidade dos líquidos) não detectaram a movimentação na estrutura. Também não houve chuva nem tremores, fatores presentes quando um fenômeno desta magnitude está prestes a ocorrer. Os estudos técnicos hão de recolher dados necessários ao esclarecimento das deficiências no sistema de segurança e de prevenção a risco da mina, identificando os responsáveis pelas ações e omissões culposas, não sendo despiciendo relembrar, neste ponto, que as condutas em apuração tangenciam o dolo eventual, como já advertiram conceituados juristas. Não se pode, levianamente, fazer afirmações, antes da conclusão cabal das diligências. Mas, alguns pontos já são claros: deficiências de segurança são inegáveis.

As vistorias que atestam a eficácia dos procedimentos, equivocadamente, não detectaram os riscos. Após a ruptura da barragem em Mariana, era claro que o sistema de segurança apresentava defeitos e precisava ser revisto, aperfeiçoado, substituído. Em meio à mescla de negligência, imprudência e imperícia, relembra-se: a previsibilidade constitui o núcleo do conceito de culpa. Uma empresa do porte da Vale jamais poderia desconhecer misteres fiscalizatórios.

Há um abismo entre as conclusões do laudo referente às próprias ações fiscalizatórias e os detalhes da ocorrência. Se acionadas fossem as sirenes, haveria tempo, em tese, para que funcionários da empresa e população da área a evacuassem. A alegação de que o toque das sirenes foi impossibilitado pela onda de lama que as atingiu causa estranheza, pois pressupõe-se que o alarme sonoro deveria ser dado com antecedência. Se os sensores não detectaram o rompimento que se avizinhava, como se pode dizer que a fiscalização era adequada? Há muitas perguntas sem resposta ou com resposta insatisfatória.

A previsibilidade é o fundamento da culpa. A negligência é evidente,
pois manter em funcionamento barragens em situação de perigo, com
alertas anteriores de sérios riscos de provável (ou previsível) ruptura, era imperativo que se tomassem providências acautelatórias, sem as quais dever-se-ia interromper, suspender, mesmo que provisoriamente, a atividade da mina Córrego do Feijão.

À negligência unem-se a imprudência e a imperícia. Não se pode olvidar que a essência da culpa é a responsabilidade, vislumbrando-se nesta uma conduta voluntária que produz resultado antijurídico não pretendido, mas previsto ou previsível, e passível de não realização na hipótese da adoção das cautelas próprias. É iterativa a jurisprudência: “É na previsibilidade dos acontecimentos e na ausência de precaução que reais e a conceituação da culpa penal” (RT 411/275).

Omissão de cautelas básicas na construção de mecanismos de segurança e prevenção a riscos situa-se nesta faixa de culpa. Permitir o
funcionamento da barragem em condições precárias de segurança enseja o reconhecimento da imprudência, quando não do dolo eventual. Mas, como já afirmamos, embora o resultado lesivo e o fracasso da mineradora pareçam, de fato, decorrer das falhas da estrutura regulatória ambiental nacional, precária e incapaz de abarcar imensa atividade exploradora ininterrupta em nosso solo, esta é somente uma das faces da questão.

Como apontou a jurista Érica Gorga em recente artigo: “Há muito em comum entre o mar de lama e o mar de corrupção que inundaram o país. Ambos são reflexos da falta de responsabilidade civil e de administradores de empresas infratoras, que, mesmo com a Lava Jato, continuam a manter fortunas pessoais, apesar de sua negligência, imperícia, imprudência e omissão, para não falar dos casos de evidente má-fé”.

Aguarda-se a adequada apuração das responsabilidades e a
respectiva punição. Aguarda-se que todas as indenizações devidas sejam pagas, que cesse o funcionamento de barragens com sistema de
alteamento a montante. Espera-se que a Vale e o Estado criem programas de atendimento psicológico aos sobreviventes traumatizados, inclusive e, de modo especial, a crianças. Espera-se que o mecanismo de segurança de barragens seja revisto, assim como ganhe rigor a concessão de licenças. O olhar atento sobre a trágica ocorrência possa impelir a mentalidade extrativista a uma transformação, pois já exibiu em demasia seus tentáculos devastadores. É hora da mudança. Antes que seja tarde. É hora de ler a palavra eloquente de Drummond:

AO CAUÊ

Meu Cauê, se eu pudesse,
Se algum poder tivesse
Não te veria sofrer …
O teu como desabando
Ferro em lágrimas rolando
Das escarpas a correr …
(fragmento do poema de Drummond)

Beatriz Helena Ramos Amaral é procuradora de Justiça aposentada do MP-SP e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.

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