5 de fevereiro de 2018
Por Pedro Barbosa Pereira Neto
As eleições de 2018 trarão inúmeras novidades para o Direito Eleitoral nacional. Tem-se falado na inauguração de uma espécie de era do Direito Eleitoral Digital diante de, pelo menos, duas novidades importantes: a previsão do financiamento coletivo das campanhas eleitorais (art. 23, § 4º, IV, da Lei 9.504/97) e do impulsionamento de conteúdo pago através da internet (art. 57-B da Lei 9.504/97)[1].
O financiamento coletivo pode abrir espaço para uma cultura de financiamento cidadão do processo eleitoral, reduzindo o “caixa dois” eleitoral e estabelecendo um vínculo mais forte entre o eleitor e o candidato. É, portanto, esperançoso. Já a utilização amplificada da internet e de aplicativos digitais trazem o assombro das chamadas notícias falsas (fake news), que impõem enormes desafios para a esfera do debate público e do regime democrático.
Não têm sido poucas as eleições mundo afora que têm experimentado o gosto amargo do mundo digital, primeiramente visto como libertador e, agora, como ameaçador. Esses são temas que têm de ser enfrentados, mas, no Brasil de hoje, o tempo é de retrocesso.
Como o passo do caranguejo, em 2018, parece que andamos para trás. E com um misto de olhar casuísta e oportunista muitos têm mirado a Lei da Ficha Limpa. Relembremos: a Lei Complementar 135/2010, sancionada pelo então presidente Lula, resultou de um extraordinário movimento da sociedade civil brasileira[2] no sentido de fazer o Congresso Nacional conferir eficácia ao disposto art. 14, § 9º, da Constituição Federal[3], segundo o qual os impedimentos eleitorais deveriam levar em consideração também a vida pregressa dos candidatos, e que, não obstante, até 2010 quedava sem eficácia normativa entre nós.
Com apoio decisivo da bancada do Partido dos Trabalhadores e do campo da esquerda, e após a decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade 29 e 30 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4578, em julgamentos históricos acompanhados por todo o país, a Lei da Ficha Limpa passou pelo teste da constitucionalidade e tem regido as eleições brasileiras desde 2012.
Com base nessa lei, a Justiça Eleitoral tem barrado inúmeros candidatos, com especial destaque àqueles que ostentam condenações por atos de improbidade administrativa e algumas espécies de crimes, reconhecidas por órgão judicial colegiado ou com trânsito em julgado. Em suma, impede a legislação que malfeitores assim declarados pela Justiça competente não possam, por um certo período, representar o povo.
Não parece má a regra, que, ademais, vem de cumprir a Constituição. Eloquente pela sua importância histórica, o impedimento reconhecido do então candidato e governador José Roberto Arruda no Distrito Federal, que, flagrado com dinheiro vivo de corrupção, estaria hoje no exercício do mandato político[4], não fosse a incidência da referida lei. Lamentavelmente, aliás, casos de políticos flagrados com malas de dinheiro têm crescido exponencialmente nos últimos tempos, o que vem apenas reforçar a missão da Lei da Ficha Limpa na democracia brasileira.
Surpreende assim o ataque revisionista que vem sofrendo essa legislação. Pretender configurar a opinião pública a partir da ideia de que as eleições teriam poderes absolutos é incorrer em discurso político perigoso. O voto popular pode muito, mas não pode tudo. A Constituição tem regras que devem ser observadas, inclusive pelo povo.
Os caminhos institucionais são longos e os atalhos, perigosos. Atalho institucional foi tomado no impeachment de 2016, e parece que o campo político prejudicado quer dar o troco. Mas isso leva a uma espécie de marcha da insensatez, cujo resultado nunca foi bom para a institucionalidade.
Quando olhamos para a Constituição e para as leis como meros empecilhos a serem removidos por uma razão política, o edifício institucional começa a ruir, e sua queda afetará a todos. Nesses momentos, é bom ficarmos atentos. Leio em Ferrajoli[5], o eminente professor florentino, que: “La democracia implica necesariamente el derecho. Bien puede haber, ciertamente, derecho sin democracia. Pero no puede haber democracia sin derecho”.
A Constituição brasileira de 1988 completará 30 anos de vigência em outubro deste ano, justamente com as eleições gerais de 2018, e é preciso garantir seu vigor para que episódios como o impeachment de 2016 restem isolados. Precisamos dela para superar a crise. Precisamos dela quando a polarização política tem produzido um discurso ideológico que afronta os valores constitucionais que ela abriga, e que, por serem fundadores do pacto democrático de 1988, estão acima das maiorias eventuais. Reverenciar a Constituição Federal e seus valores é um dever cidadão.
A Lei da Ficha Limpa, como qualquer legislação, talvez tenha excessos. Pode ser aperfeiçoada. Mas não é hora de mexer nela. Tem ela cumprido um papel fundamental numa sociedade que precisa melhorar sua representação política.
[1] Ambos com redação dada pela Lei 13.488/17.
[2] A Lei da Ficha Limpa tem matriz na democracia direta, já que derivou de iniciativa popular de lei (CF, art. 14, III).
[3] Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994.
[4] As pesquisas eleitorais à época, apontavam ampla vantagem de José Roberto Arruda.
[5] Luigi Ferrajoli, Principia iuris, Teoria del derecho y de la democracia, 2. Teoria de la democracia, Editorial Trotta: Madrid, 2011, p.17.
Pedro Barbosa Pereira Neto é membro do MPF e associado ao MPD.
Clique aqui e leia o original no Conjur.
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