10 de setembro de 2018

Por Beatriz Helena Ramos Amaral

Acende-se e reacende-se, na doutrina, na jurisprudência e na sociedade, uma relevante discussão concernente à natureza e aplicação das normas legais relativas à proteção do patrimônio cultural, incluindo-se a correta manutenção e a adequada preservação dos bens que o compõem.

Diante de um fato consumado desolador da magnitude do incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, há poucos dias — precisamente no último dia 2 — e das devastadoras consequências reais do desaparecimento, quase na integralidade, de seu imenso acervo cultural, é natural que a indignação e comoção nacionais se misturem à busca dos responsáveis diretos pela conservação e pela manutenção do palácio que sediava o museu, na Quinta da Boa Vista, e que já abrigou a família real portuguesa. Em 200 anos de existência, o Museu Nacional reuniu o maior acervo de história natural e antropologia da América Latina, em seus 20 milhões de itens catalogados, e tinha, entre eles, preciosidades literárias, históricas e científicas.

Entretanto, passada a comoção, é preciso que bem se examine e articule, com seriedade e rigor, o quadro de razões que geraram a ocorrência, as condutas de ação ou de omissão que influíram no grave resultado. É preciso identificar o nexo de causalidade entre os comportamentos omissos e negligentes e o resultado da catástrofe. Obviamente, a individualização e a identificação das responsabilidades serão realizadas no âmbito investigatório. E, evidentemente, para que a Justiça se faça, em sua amplitude, não só no aspecto de reparação e repressão que caracteriza o Direito Penal, como também no aspecto pedagógico, didático, também essencial das normas criminais, faz-se mister a análise acurada e criteriosa da situação fática pelos órgãos competentes.

O caráter pedagógico do Direito Penal, isto é, da punição dos responsáveis pela prática de ilicitudes de natureza penal, deriva do propósito de nortear comportamentos futuros, para que sejam evitadas novas tragédias similares, de igual, menor ou maior escala, seja a destruição total ou parcial do imóvel, seja o perecimento de acervo, que, na hipótese ocorrida, pôs por terra décadas e décadas de pesquisas e dedicação de estudiosos, antropólogos, sociólogos, biólogos, historiadores, escritores, mestres, cujo esforço, dedicação e, em muitos casos, verdadeira abnegação, construíram um acervo notável e que estava a celebrar seu segundo centenário, não fosse a dimensão de uma série de omissões e da negligência que acabou, inclusive, por deixar sem água os hidrantes do museu, isto para citar, a título de exemplo, somente um dos fatos que, somado a outros tantos fatores, culminou com o incêndio de tão grandes proporções.

Aprendemos em Direito Penal o quão tênue é a distância entre a culpa em scrictu sensu (em suas três modalidades conhecidas, a negligência, a imprudência e a imperícia) e o dolo eventual. Aprendemos com a vida e a experiência que a educação e a cultura pavimentam o caminho da liberdade e do respeito integral aos valores democráticos. É indiscutível que comportamentos recentes, permeados por um absurdo e crescente desinteresse por cultura, arte, história, ciência, literatura, pelo humanismo, vêm conduzindo setores da sociedade à pobreza de um indesejável confronto, muitas vezes pueril, em detrimento de ideias, diálogos, projetos, propostas construtivas para presente e futuro. Confrontos violentos e sem argumentação desumanizam, cada vez mais, a sociedade. Representam ecos do vazio cultural que nenhum grito ou força jamais poderá substituir. Cultura é alimento, vida e sabor.

No Brasil, coube à Constituição de 1937, a terceira da história do país, a primazia da proteção ao patrimônio cultural. As Constituições que a ela se seguiram trataram de aperfeiçoar a noção de patrimônio cultural, até que a Convenção de Paris, editada em 1972, e promulgada sete anos depois pelo Brasil, por meio do Decreto 80.978, de 12 de dezembro de 1977, trouxe significativos avanços, contribuindo decisivamente para a noção de patrimônio cultural.

Na esteira desse avanço, foi promulgada a Constituição Federal de nossa república vigente, em 1988, que trata do tema nos artigos 24, 216 e 225. O artigo 24, inciso VII, da CF, ao tratar da competência legislativa para a matéria, refere-se à “proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico”. O artigo 216, V, da mesma Constituição, ao definir o patrimônio cultural, menciona: “Conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. Dispõe o artigo 225 da Constituição Federal, em seu parágrafo 3º, que “as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas e jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar o dano”.

Inobstante o indiscutível avanço no tratamento constitucional dado ao tema, já há exatos 30 anos (1988), é unânime, na doutrina, o reconhecimento do quão acanhada ainda se encontra a legislação infraconstitucional pátria, incluindo-se as leis penais substantivas (Código Penal, leis 3.924/61 e 4.845/6, ambas instituidoras de mecanismos de proteção ao patrimônio) e a Lei 9.605/1998, que define os crimes ambientais e também contempla, em alguns dispositivos, as ofensas ao patrimônio cultural, mormente quando se compara a legislação brasileira com a de outros países, como a Itália, por exemplo, que possui um Código do Patrimônio Cultural e da Paisagem.

Embora as figuras típicas de incêndio e de dano já existissem há quase um século em nosso ordenamento penal, é evidente que se mostravam insuficientes para dar conta da vasta gama de ofensas, lesões e violações do patrimônio público. Devido à evidente complexidade do bem jurídico tutelado, foram as figuras dos artigos 165 e 166 do Código Penal revogadas por novas normas estabelecidas pela da Lei Federal 9.605/98, quais sejam, as inseridas nos artigos 62, 63, 64 e 65. O artigo 62 contempla a conduta típica de destruir, inutilizar ou deteriorar bem público e, entre eles, bem em que se presume haver interesse público e protegido por lei (museu, pinacoteca, biblioteca, instalação científica ou similar, arquivo). Admite forma dolosa e culposa e também admite a tentativa (o artigo 63 diz respeito à alteração ou adulteração de estrutura de edificação ou local protegido por lei. Por seu turno, o artigo 64 pune construção irregular em solo não edificável ou em seu entorno, enquanto o artigo 65 pune quem pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano).

O Estado tem o dever jurídico de preservar o patrimônio cultural. É ele o garantidor por excelência do patrimônio cultural, garantindo o acesso e uso pela presente e pelas futuras gerações do país. Ora, leis brandas, com penas ínfimas e possibilidade de benefícios, não se afiguram satisfatórias ou suficientes para a eficácia da proteção do conjunto de bens móveis e imóveis que compõem o patrimônio cultural. Soma-se a isso o crescente e impiedoso descaso crônico com a educação e com a cultura e a inversão de valores que abraça a sociedade contemporânea. O desinteresse pela cultura e a certeza de apenamentos brandos ou até mesmo inexistentes, na prática, geram uma certa sensação de impunidade, propiciando, consequentemente, comportamentos de reiterada omissão que redundam na lenta degradação ou mesmo na destruição completa de bens culturais inestimáveis. No caso presente, teremos, de qualquer forma, o artigo 59 do Código Penal, que, ao orientar os magistrados na aplicação da pena, apresenta, como uma das balizas, o alcance da ofensa, isto é, o resultado efetivamente ocorrido.

A importância do nexo causal entre a conduta e o resultado lesivo há de levar em conta a soma de comportamentos que para este contribuíram, dando-se relevo, nesta análise, da conditio sine quae non. Um alerta claro de risco de incêndio, tecnicamente ofertado no ano de 2004, não poderá deixar de ser examinado e integrado ao conjunto de elementos investigatórios. Nesse fato notório, está presente o conceito de previsibilidade, tão relevante no Direito Penal.

Ao discorrer sobre o delito culposo, Mirabete o define como “a conduta humana voluntária (ação ou omissão) que produz resultado antijurídico não querido, mas previsível, e excepcionalmente previsto, que podia, com a devida atenção, ser evitado”. As três modalidades da culpa em sentido estrito, a imprudência, a negligência e a imperícia, guardam, em sua essência, a inobservância de um dever de cuidado, de cautela. E Nélson Hungria, ao estudar a culpabilidade e, em especial, o conceito de previsibilidade, afirma que, no crime culposo, o agente não prevê aquilo que lhe era previsível. Esse conceito, entretanto, serve apenas à chamada culpa inconsciente, pois, no caso da culpa consciente, o sujeito prevê que o resultado possa ocorrer, mas acredita, sinceramente, que ele não ocorrerá.

Possa este lamentável e trágico fato ocorrido com o Museu Nacional, ao menos, fomentar a discussão sobre a necessidade de uma alteração nas normas legais, que, efetivamente, se mostrem mais eficazes especialmente no que tange à prevenção de lesões ao patrimônio cultural. E seja, ainda, semente a alertar, uma vez mais, sobre a necessidade de se preservar, respeitar e dar voz à cultura, em toda a sua amplitude.

Referências bibliográficas
ESTEVES, Henrique Peres. “Os crimes comissivos por omissão na tutela do patrimônio cultural”
FERREIRA, Ivette Senise. Tutela Penal do Patrimônio Cultural, 1995, São Paulo, RT Editores
MIRABETE, Julio Fabbrini. “Comentários ao Código Penal”, vlumes I – II – III, 1980, Rio de Janeiro, Editora Forense
MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. “Lei de Crimes Ambientais auxilia na proteção do patrimônio cultural brasileiro”, Conjur, 15 de JuClho de 2018
MATTA, Roberto da. “Morte de um museu”, in jornal “O Estado de São Paulo”, Caderno 2, edição de 5 de setembro de 2018, , página C5

Beatriz Helena Ramos Amaral é procuradora de Justiça aposentada do MP-SP e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.

Clique aqui e leia o original no Conjur.