Por Fernanda Narezi Pimentel Rosa e Paulo José de Palma

Como é cediço, na execução criminal, a coisa julgada, assegurada no bojo do artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal, por força do princípio da individualização da pena, está sujeita à cláusula rebus sic stantibus.

Dessa feita, no curso da execução da pena, as decisões que concedem, ou denegam, benefícios perduram enquanto permanecer a situação fática que ensejou a sua prolação.

Exemplificando: uma progressão de regime deferida ao sentenciado poderá ser revista, ainda que da decisão concessiva não caiba mais recurso, se chegar ao conhecimento do juízo falta grave praticada por aquele antes da concessão do benefício.

De igual modo, se a benesse eventualmente é denegada em virtude de atestado, dando conta da má conduta carcerária, decorrente, por exemplo, de falta grave praticada, de sorte que, ao depois da respectiva apuração, advém a absolvição ou descaracterização pautada na homonímia, a decisão também poderá ser modificada.

No segundo exemplo, a decisão, estribada em questão vencida pelo decurso de tempo, se mostrou presentemente equivocada, tanto que, atualizados os fatos, sua revisão constitui medida impositiva.

Pois bem.

Recentemente foi divulgado pela imprensa que a Justiça está investigando suposta fraude em relatório médico apresentado nos autos da execução do sentenciado Roger Abdelmassih.

Referido sentenciado, condenado a uma pena de 181 anos de reclusão, pela prática de incontáveis estupros, cumpria pena no regime fechado. Em meados 2017, obteve a benesse da prisão domiciliar sob o fundamento de que o Estado não dispunha do necessário para os cuidados médicos que então necessitava, lembrando-se que a concessão amparou-se em laudo médico.

E muito embora tenha havido o decurso de mais de dois anos da decisão concessiva, caso sobrevenha comprovação de que o estado de saúde outrora atestado não correspondia à realidade e de que o relatório médico se mostrou inverídico e de alguma forma influenciou na decisão, tem-se que o deferimento alhures determinado deve ser revisto, notadamente se novo relatório médico desmentir as conclusões pretéritas não havendo se falar em ofensa a coisa julgada, uma vez que os pressupostos fáticos e jurídicos que lhe serviram de suporte não subsistem.

Por fim, oportuno colacionar precedentes do Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo que a coisa julgada em sede de execução penal está sujeita à cláusula rebus sic stantibus, de modo que alterado o substrato fático-jurídico que amparou a decisão, sua alteração é de rigor, sem que isso importe em ilegalidade ou afronta a tal instituto:

“PROCESSUAL PENAL. EXECUÇÃO. HABEAS CORPUS. PROGRESSÃO DE REGIME CONCEDIDA. POSTERIOR REVOGAÇÃO DIANTE DO NÃO PREENCHIMENTO DO REQUISITO OBJETIVO. COISA JULGADA. CLÁUSULA REBUS SIC STANDIBUS.
ALTERAÇÃO DO SUBSTRATO FÁTICO-JURÍDICO. ERRO MATERIAL. POSSIBILIDADE DE CORREÇÃO. ORDEM DENEGADA.
1. A força vinculativa do ato decisório, em sede de execução penal, subordina-se à cláusula rebus sic standibus, é dizer, está atrelada à manutenção dos pressupostos fáticos e jurídicos que lhe serviram de suporte.
2. In casu, inexiste o alegado constrangimento ilegal, tendo em vista que a decisão que revogou a progressão de regime equivocadamente concedida ao paciente, diante do constatado erro material, não padece de nenhuma ilegalidade, tampouco caracteriza ofensa à coisa julgada. Uma vez constatada a existência de nova execução, até então desconhecida, agiu com acerto o Juízo singular ao reconhecer a alteração do substrato fático-jurídico e revogar a decisão que havia deferido o benefício, por ausência de lapso temporal, sob pena de, ao contrário, manter o apenado em um regime de cumprimento de pena do qual ele ainda não faz jus por não ter preenchido o requisito objetivo.
3. Ordem denegada.” (HC 385.541/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 16/05/2017, DJe 24/05/2017)

HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. FALTA GRAVE. COMETIMENTO DE NOVO DELITO (TRÁFICO DE DROGAS) DURANTE O PERÍODO DE PROVA DO LIVRAMENTO CONDICIONAL. PERDA DOS DIAS REMIDOS PELO TRABALHO. PRECEDENTES DO STJ. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA.
1. O art. 127 da Lei de Execução Penal preceitua que o condenado que for punido com falta grave perderá o direito ao tempo remido pelo trabalho, iniciando-se o novo cômputo a partir da data da infração disciplinar.
2. O entendimento desta Corte Superior e do Pretório Excelso é de que o instituto da remição constitui, em verdade, um benefício concedido ao apenado que trabalha e a decisão acerca de sua concessão sujeita-se à cláusula rebus sic stantibus.
3. Tratando-se a remição de mera expectativa de direito do reeducando, não afronta a coisa julgada a decisão que determina a perda do referido benefício legal, mesmo que transcorridos 2 anos do decisum que reconheceu o cometimento da falta grave.
4. Parecer do MPF pela denegação da ordem.
5. Ordem denegada.” (HC 116.653/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 26/03/2009, DJe 11/05/2009)

Por fim, vale lembrar que o maior exemplo da incidência de tal clausula é o artigo 127 da Lei 7.210/1984, cujos termos determinam a perda de parte dos dias remidos aquele que cometer ulterior falta grave.

Fernanda Narezi Pimentel Rosa é promotora de Justiça, assessora do Núcleo de Execuções Criminais do CAOCrim e integrante do MP Democrático.

Paulo José de Palma é promotor de Justiça, assessor do Núcleo de Execuções Criminais do CAOCrim e integrante do MP Democrático.

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