16 de julho de 2018

Por Vinicius Rodrigues França

Escrever sobre Direito Penal e Processual Penal no Brasil não é tarefa fácil. Afinal, em regra, as leis brasileiras deixam muito a desejar, seja porque não observam a melhor técnica legislativa, exigindo demasiado esforço exegético, o que, por vezes, retira-lhes o sentido pretendido pelo legislador, seja porque, em muitos casos, já nascem viciadas em seu espírito, tutelando interesses diversos daqueles que representam os anseios sociais ou o bem comum. Quem não se lembra do que ocorreu com o projeto de lei das dez medidas contra a corrupção?

Referido cenário faz do Brasil um país peculiar, no qual existem leis “que pegam” e as que “não pegam”.

Não bastasse o caos legislativo em que vivemos, decorrente do emaranhado de diplomas legais que compõem nosso sistema jurídico, muitos deles ultrapassados, anacrônicos e obsoletos, de uns tempos para cá, outro problema tão ou mais grave vem afligindo os operadores do Direito e, de modo geral, a sociedade brasileira, qual seja, a insegurança jurídica decorrente da falta de uniformidade das decisões judiciais.

Sabe-se que o Direito não é uma ciência exata e, por óbvio, não observa fórmulas matemáticas. Isso não significa, entretanto, que seus operadores podem interpretá-lo de modo arbitrário, como melhor lhes aprouver.

A teratológica decisão de libertar o ex-presidente Lula, proferida pelo desembargador federal Rogério Favreto, do TRF-4, revela que o Judiciário brasileiro vive uma crise de identidade sem precedentes, provocada pela politização de suas mais elevadas cortes. Desde que grandes nomes da política nacional passaram a frequentar as páginas policiais, tornou-se praticamente impossível saber qual o entendimento da suprema corte sobre os mais variados temas, a exemplo da possibilidade de execução provisória da pena após condenação criminal em segundo grau de jurisdição.

A esquizofrenia jurídica observada naquele tribunal é tamanha que, por vezes, o debate jurídico dá espaço a discussões do mais baixo nível, contrárias ao Código de Ética da Magistratura, segundo o qual “o exercício da magistratura exige conduta compatível com os preceitos deste Código e do Estatuto da Magistratura, norteando-se pelos princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro” (artigo 1º).

No Brasil pós-“lava jato”, parece algo normal magistrados falarem fora dos autos, buscando o respaldo da opinião pública para suas decisões, muitas vezes questionáveis do ponto de vista do melhor Direito. Referida postura vai na contramão do que preceitua o artigo 36, III, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35/79): “Art. 36 – É vedado ao magistrado: (…) III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”.

Vivenciamos um momento de crise, que exige reflexão sobre questões essenciais e caras ao regime democrático brasileiro e que, obrigatoriamente, passa por uma análise crítica do atual sistema jurídico e do funcionamento das instituições que lhe são afetas.

O recente episódio envolvendo a ordem frustrada de soltura do ex-presidente Lula nos revela, por exemplo, que a regra do quinto constitucional precisa ser aprimorada. Em uma democracia representativa como a nossa, em que a legitimidade do exercício do poder decorre da soberania popular ou, no caso de alguns agentes políticos, como magistrados e membros do Ministério Público, da regra do concurso público, parece não ser adequado que parcela significativa dos tribunais seja composta de pessoas escolhidas por meio de critérios eminentemente políticos.

Não estamos defendendo a extirpação da regra, mas a criação de critérios mais rígidos e transparentes para a escolha dos magistrados, capazes de evitar o aparelhamento político-partidário do Poder Judiciário. Afinal, embora não pareça, nos termos do artigo 95, parágrafo único, da Constituição Federal, aos juízes é vedado o exercício desse tipo de atividade.

Passadas oito décadas desde a inauguração do quinto constitucional no sistema jurídico brasileiro pela Constituição Federal de 1934, parece claro que o instituto deve ser revisitado. Será correto, por exemplo, atribuir-se vitaliciedade aos que são indicados a ocupar cargos nos tribunais pela regra do quinto? Não seria razoável o estabelecimento de restrições às pessoas que mantêm filiação partidária ou que, em algum tempo, exerceram atividades político-partidárias, como uma quarentena ou impedimentos para o exercício da jurisdição?

Referidas indagações, aliás, caem como uma luva para o Supremo Tribunal Federal, definido recentemente pelo ministro Gilmar Mendes como uma corte malformada e mal indicada, na medida em que a eleição de seus membros decorre de livre escolha do chefe do Poder Executivo, a partir de critérios demasiadamente elásticos e genéricos.

A falta de requisitos mais objetivos para a escolha dos ministros da suprema corte tem gerado na comunidade jurídica e, principalmente, na sociedade brasileira dúvidas acerca da isenção de alguns julgados e decisões, o que não é nada bom.

Outra questão que merece a atenção dos legisladores e da comunidade jurídica refere-se à sistemática recursal do processo penal, bem como ao manejo do Habeas Corpus ao longo do processo. Casos como o do deputado Paulo Maluf e do ex-presidente Lula são exemplos claros dessa necessidade.

A infinidade de recursos no âmbito processual penal, associada à morosidade do Poder Judiciário, decorrente de sua natural incapacidade para o pronto julgamento do elevado número de feitos que lhe são diariamente submetidos, faz com que, em muitos casos, ao final do processo, a pena aplicada ao acusado seja absolutamente inútil aos fins a que se destina.

O direito à ampla defesa, como cláusula pétrea que é, não permite relativização. Contudo, imprescindível a criação de mecanismos que impeçam a utilização procrastinatória dos recursos.

Do mesmo modo, o manejo do Habeas Corpus precisa de regramento mais claro, que o distancie das vias recursais.

Embora a jurisprudência imponha limites à utilização do Habeas Corpus como substitutivo dos recursos ordinários, o fato é que ele continua servindo para a revisão de decisões judiciais proferidas por órgãos singulares e colegiados. Veja-se a recente decisão da 2º Turma do Supremo Tribunal Federal que concedeu Habeas Corpus de ofício ao ex-ministro José Dirceu, condenado em segunda instância a mais de 30 anos de prisão pela prática dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Para o relator do HC, ministro Dias Toffoli, a medida seria adequada por haver chances de reversão da pena nas instâncias superiores.

A utilização indevida do Habeas Corpus como substitutivo dos recursos ordinários representa efetiva disparidade de armas entre acusação e defesa, já que àquela não é facultada via recursal dotada de efeito suspensivo ou ativo. Além disso, ocasiona tumulto processual e colabora para a morosidade da Justiça, o que, evidentemente, precisa ser evitado.

A decisão do ministro Dias Toffoli reforça, ademais, a necessidade de fortalecimento das hipóteses de impedimento ou suspeição dos magistrados, sobretudo daqueles que chegam ao Poder Judiciário mediante nomeações discricionárias e políticas. Toffoli atuou como advogado nas campanhas presidenciais do ex-presidente Lula. Ocupou cargos na área de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República durante a gestão de José Dirceu. Posteriormente, foi nomeado para os cargos de advogado-geral da União e ministro do Supremo Tribunal Federal pelo presidente Lula. Assim, seria recomendável e de bom tom que se afastasse dos casos envolvendo referidas pessoas.

A proximidade objetiva entre julgador e jurisdicionado enfraquece a legitimidade das decisões judiciais, dando margem ao compadrio. E, num momento de crise política e econômica como o que estamos vivenciando, tudo o que não precisamos é de uma crise de credibilidade do Poder Judiciário.

Não há dúvida de que os tempos de crise são também tempos de crescimento e amadurecimento. Assim, torçamos para que os dias atuais sirvam, ao menos, para o fortalecimento de nossas instituições.

Vinicius Rodrigues França é promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo e membro do MP Democrático.

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