Por Airton Florentino de Barros

Um desempregado solteiro consegue sobreviver por certo tempo procurando e recolhendo sobras aqui e ali. Chega uma hora, todavia, que se zanga e se revolta contra a indiferença alheia. Mesmo assim, segue suportando o abandono da sorte até o momento em que, comovido com o sofrimento de uma mãe e sua criança de colo que, igualmente desprezadas pela comunidade, passam fome e extremo frio ao relento, é flagrado furtando para elas pão e cobertor. É levado à reclusão e, sem entender o porquê da maior valia do patrimônio de certas pessoas em relação à vida de dois frágeis seres humanos, que tentou proteger, vê-se não como criminoso, mas como vítima de singular injustiça. Uma coisa leva à outra e, depois de alguns meses sendo submetido cotidianamente a humilhações ainda maiores, torna-se mesmo um criminoso ao, num surto de desespero, matar o carcereiro.

Fatos como esse ocorrem frequentemente e são narrados tanto pela literatura como pelo jornalismo policial, demonstrando que a ocupação remunerada do ser humano pode evitar a prática de crimes.

Segundo Aristóteles, aliás, quase todos os seres humanos contentam-se em sobreviver repetindo o que os outros sempre fizeram ou fazem, desde que não comprometida a sua dignidade.

O que deseja qualquer ser humano é ser considerado por outro ou por todos os outros da espécie como um indivíduo igual. Sem esse sentimento de igualdade, ninguém consegue alcançar sua própria dignidade.

Precisa o ser humano reconhecer-se existente em sua individualidade e útil em sua comunidade. Não é por outra razão que procura proteger incessantemente sua reputação, como fonte de energia vital. E para a aferição de sua função social, utilidade e importância frente à coletividade, observa permanentemente a forma com que costuma ser por ela tratado.

Espera a inteligência média que, para a manutenção da dignidade humana, a sociedade deve atribuir a cada um e a todos os seus integrantes o mesmo grau de oportunidades, ônus e benefícios.

Trocando em miúdos, nenhum ser humano quer se sentir invisível. E a indiferença da sociedade sempre acarretou e continuará a acarretar a inevitável revolta dos desprezados.

Não é sem motivo que, com o crescimento do desemprego na região metropolitana de São Paulo, que chegou a 20% em 1997 e 1998, tornou-se visível a expansão do tráfico de armas e drogas e o fortalecimento das organizações criminosas, com a chamada violência de rua descambando para a barbárie. E as coisas tendem a piorar se a sociedade não proclamar como prioridade de suas prioridades a instituição de políticas públicas e sociais criadoras do denominado pleno emprego, sobretudo para os mais jovens, em fase de formação de consciência política e naturalmente na justa busca de perspectivas de vida.

A propósito, a Europa inteira vem constatando que seus jovens desempregados, desprezados e invisíveis, em grande número, estão partindo na atualidade para seitas radicais propagadoras do terrorismo. E esse dano irreparável poderia ser evitado.

O certo é que não podem os governantes continuar com o discurso de que o emprego ao cidadão é uma concessão generosa do mercado, pois é do Estado, sob pena de não justificar sua existência, o dever de garantir ao seu constituinte a cidadania, a dignidade e os valores sociais do trabalho (CF, artigo 1º, II, III e IV). E o indivíduo não terá cidadania e dignidade senão através da prestação de trabalho útil à sociedade.

Não custa acrescentar que é do Estado Democrático de Direito a obrigação de garantir ao cidadão a vida, a liberdade e a igualdade (CF, artigo 5º). E o cidadão não terá como sobreviver sem uma ocupação remunerada. Não terá liberdade sem o mínimo de independência econômico-financeira. E não terá a igualdade a que se referiu inicialmente, pois ela jamais existirá para um ser humano vítima do desprezo social.

Airton Florentino de Barros é advogado e professor de Direito Empresarial. Foi procurador de Justiça em SP e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.