17 de dezembro de 2018

Por Carlos Cardoso de Oliveira Júnior

Após o terremoto político que reduziu a escombros boa parte do mundo político nacional estruturado após a redemocratização do país, o novo governo saído das urnas vai adquirindo as suas feições iniciais, principalmente depois da composição do ministério, que, sob o comando do presidente Bolsonaro, tomará posse em janeiro do ano vindouro.

Do conjunto dos seus ministros, a grande novidade é representada pela presença do ex-juiz federal Sergio Moro, que se transformou num ícone da operação “lava jato”, que há mais de quatro anos vem revelando ao país o quadro de corrupção sistêmica protagonizada pela parcela majoritária da nossa classe política e por grandes segmentos do mundo empresarial.

Surfando numa onda inédita de indignação em face desse contexto e embasado num discurso fortemente contrário à corrupção e à violência que aterroriza a população,e tendo como pano de fundo uma crise econômica e social gerada pela maior recessão dos últimos oitenta anos da nossa história, bem como contrariando a quase unanimidade dos prognósticos eleitorais realizados antes de iniciado o processo eleitoral,o senhor Jair Bolsonaro conquistou a maioria dos votos válidos e sagrou-se o próximo presidente da república. Por isso mesmo, o novo governo assumirá tendo à frente o desafio de sanear as finanças públicas, retomar o crescimento econômico e reduzir os níveis alarmantes de desemprego, malversação dos recursos públicos e insegurança pública.

Como se vê, caberá ao futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública formular e implementar políticas públicas e iniciativas legislativas responsáveis por esses temas centrais do futuro governo e a respeito dos quais há fundadas e generalizadas expectativas por parte população, mesmo entre aqueles que não votaram no presidente eleito, posto que, em maior ou menor grau, alcançam todos os estratos sociais.

Nesse sentido, até pelo que já antecipou em entrevistas, o futuro ministro da Justiça deverá priorizar, no âmbito da sua pasta, o combate à corrupção e ao crime organizado. E para isso indicou como seus futuros auxiliares importantes quadros da polícia federal,com larga experiência em boa parte desses temas.

Pela dimensão nacional desses problemas e por limitações constitucionais, sozinho, o governo federal não atenderá a contento a demanda da sociedade, impondo-se, por isso mesmo, ao lado das suas iniciativas, um amplo trabalho de articulação nacional, envolvendo principalmente os governos estaduais, sobre cujas atribuições recaem o grosso da responsabilidade sobre o tema da segurança pública. E aqui reside um dos nós da questão.

Como se sabe, são históricas, como regra, a omissão e a incompetência dos governadores na luta contra a criminalidade. Entre muitos outros dados, avulta o número de 64 mil homicídios dolosos perpetrados em 2017 no território nacional,dos quais menos de dez por cento são esclarecidos. Em relação aos demais delitos graves, menos de cinco por cento são esclarecidos. Tudo isso, sem nenhuma perspectiva de redução. As secretarias de segurança são tidas como instâncias administrativas de segunda categoria na generalidade dos governos estaduais e são tocadas sob a égide da improvisação e do antiprofissionalismo. Isso explica a desvalorização a que estão submetidos os profissionais dessa área e as precárias condições de trabalho em que atuam.

Idêntica tragédia se observa em nosso sistema penitenciário. São quase inexistentes programas de prevenção e de ressocialização voltados para a população carcerária, cada vez mais submetida às facções criminosas que dominam, de maneira crescente, as unidades prisionais.Nesse ambiente, essas facções adquiriram níveis de organização e ousadia que lhes permitiram expandir os seus domínios por amplas áreas do território nacional e para alguns dos países vizinhos ao território brasileiro. O PCC, para ficar no exemplo mais emblemático, nascido, criado e consolidado sob as barbas dos governadores de São Paulo, já compõe a pauta de “produtos de exportação” desse estado e do país.

Acrescente-se a esse cenário desolador o quadro falimentar da maioria dos estados da federação, cujas finanças públicas, destruídas pela corrupção e pelas más gestões de quase todas as suas administrações, não oferecem mínimas condições de melhoria dos investimentos que as áreas sociais reclamam desesperadamente, entre elas a da segurança pública.

Numa análise panorâmica, perfunctória e incompleta dos pontos aqui abordados, verifica-se que boa parte das soluções dos problemas a serem enfrentados pela futura administração federal no tocante à luta anticorrupção e ao combate ao crime organizado está inafastavelmente associada à reconstrução – em bases sólidas, saudáveis e sustentáveis – das finanças públicas dos governos federal e estaduais.

Apesar dessas dificuldades, se de fato houver vontade e empenho políticos por parte do novo governo federal, particularmente no que diz respeito a desenvolver um competente e permanente trabalho de articulação política junto ao Congresso Nacional, será possível avançar na consolidação, ampliação e aperfeiçoamento dos instrumentos jurídicos existentes e que têm servido de base para o sucesso, ainda que parcial, dos enfrentamentos judiciais travados nos últimos anos contra parcela daqueles que promovem a apropriação criminosa dos recursos públicos entre nós.

Diga-se, a propósito, que um bom receituário para o fortalecimento desse processo de mudanças legais e institucionais está consubstanciado no pioneiro e primoroso trabalho desenvolvido de maneira articulada por mais de trezentas entidades da sociedade civil, que, sob a coordenação da Transparência Internacional e da Fundação Getúlio Vargas, apresentou um Relatório com 70 Novas Medidas Contra a Corrupção, incluindo propostas legislativas e administrativas para a consecução dos objetivos ali delineados.

Já no tocante às mudanças especificamente voltadas para a temática relativa ao crime organizado e à criminalidade comum, com destaque para os delitos praticados com o emprego de violência e grave ameaça, bem como aos crimes praticados sem violência mas de relevante repercussão social, impõe-se uma minudente revisão da nossa legislação penal, processual penal e de execução penal, com o objetivo de suprimir os anacronismos e absurdos nelas contemplados e que acabam por facilitar a impunidade dos seus autores.

Apenas a título de ilustração, é necessária uma mudança expressiva nos pontos referentes aos prazos prescricionais e às suas causas interruptivas, nas regras de progressão de regime, nas penas mínimas previstas para delitos inegavelmente graves, nos benefícios manifestamente exagerados contemplados pela lei de execução penal etc.

Não se trata de criar uma legislação penal draconiana e desumana, mas de estabelecer um grau razoável de proporcionalidade entre a gravidade dos delitos e as penas a eles cominadas, inclusive no tocante às suas condições de cumprimento.

O Brasil já vive sob a égide do chamado direito penal mínimo. E caminhamos celeremente para o direito penal nenhum, tamanha a impunidade vigente no país.

Urge, portanto, reverter esse quadro.

Essa agenda é grande e complexa, porém, inadiável. Sem vencer a luta contra a corrupção e a criminalidade, assistiremos ao crescente descrédito da democracia.

igualmente importante atentarmos para o fato de que os inimigos dessa agenda estão mais vivos do que nunca, inclusive no Congresso Nacional, e tudo farão para inviabilizá-la, daí a imprescindibilidade de mobilizarmos a sociedade para defendê-la em todos os cenários em que ela se desenvolver.

O governo Bolsonaro assumirá o país cercado de dúvidas e incertezas, principalmente por algumas das suas escolhas ministeriais, nitidamente realizadas a partir de discutíveis critérios ideológicos. Mas é inegável o seu acerto na escolha do futuro ministro Sérgio Moro, que tem todas as credenciais para propor e tocar um conjunto de iniciativas que, se apoiadas firmemente pelo seu governo, promoverão mudanças há muito reclamadas pela população brasileira.

Assim, o avanço no enfrentamento da cleptocracia brasileira, no fechamento das porteiras jurídicas que lhe tem garantido histórica impunidade, no fortalecimento e aperfeiçoamento do arcabouço jurídico e institucional das instituições de repressão, controle e fiscalização do universo da criminalidade, sempre em consonância com os limites constitucionais, abrirão novas perspectivas para o êxito de um novo patamar civilizatório a que faz jus a sociedade brasileira.

Carlos Cardoso de Oliveira Júnior é procurador de Justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo. Membro do Movimento do Ministério Público Democrático.

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