29 de julho de 2019
Por Celeste Leite dos Santos
Desde a assunção pelo Estado do monopólio do direito de punir, as vítimas de crimes ficaram relegadas a segundo plano, havendo sua verdadeira desumanização no sistema de Justiça criminal, com a sua consequente instrumentalização. A palavra vítima provém do latim victima e significa pessoa ou animal sacrificado a Deus[1] (Bíblia, cap. I, vers 2-5). Na atualidade, vivenciamos uma sociedade da insegurança e do medo, o que denota verdadeira crise de adaptação da ciência penal e processual penal aos novos anseios da sociedade do século XXI.
Feitas essas constatações, apresentei em 2016 projeto de pesquisa ao professor titular de Direito Penal da PUC-SP Oswaldo Henrique Duek Marques, a fim de tornar possível a implementação prática do Projeto de Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos (Avarc), consistente na implementação de estratégias de combate à vitimização primária, secundária e terciária[2].
Sumalla define a vitimização como “o processo pelo qual uma pessoa sofre as consequências de um fato traumático”[3]. Com frequência, é resultado de violência que pode ser causada pela natureza (desastre natural) ou pelo ser humano (de uma pessoa a outra, a um grupo ou sociedade, como, por exemplo, violência natural — furacões, terremotos —, violência verbal — intimidação, insultos, humilhação ou ameaças —, violência estrutural — pobreza, racismo, lesbofobia e outras situações nas quais um grupo é prejudicado em razão da injustiça social —, guerra e violência crônica — prejudica as relações sociais, instituições, recursos naturais e promove a banalização da violência)[4].
O Projeto Avarc possui três pilares básicos: análise (inteligência na coleta de dados a fim de potencializar a tomada de decisões), acolhimento de vítimas (manejo do destinatário da atuação ministerial, que é a sociedade por meio dos indivíduos concretos que a compõem) e resolução de conflitos (a partir da perspectiva do trauma como uma das vertentes do injusto penal restaurável).
Dentre as estratégias utilizadas pelo Projeto Avarc temos identificado pontos de vitimização, efetuado recomendações aos órgãos responsáveis pela implementação da política pública respectiva, bem como trabalhos e parcerias junto à comunidade, visando a melhora das condições de segurança coletiva e bem-estar (prevenção primária). O projeto ainda se dedica às vítimas potenciais existentes na sociedade, especialmente os coletivos mais vulneráveis (prevenção secundária); por fim, nossa atuação se dedica ao acolhimento das vítimas diretas, indiretas e coletivas de crimes praticados, de acordo com a natureza individual ou coletiva do bem jurídico tutelado pelo legislador penal (prevenção terciária).
São fornecidos aportes da vitimologia, medicina e psicologia para minimizar os traumas causados pela prática delitiva, uma vez que estes podem desencadear patologias, como transtorno de estresse agudo, transtorno de estresse pós-traumático (PTSD) e trauma de desenvolvimento (trauma complexo). Os traumas podem ser classificados em individuais ou coletivos, podendo ter origem em um evento único ou cumulativo[5]. O trauma individual, além das hipóteses ut supra, se subdivide em secundário ou compartilhado[6], participativo[7] e de violação da dignidade[8]. Por sua vez, os traumas coletivos se dividem em trauma histórico[9], cultural[10] e estrutural[11]. Presentes os seus pressupostos, incumbe à ciência penal integrar mecanismos próprios que possibilitem a conscientização do trauma sofrido e a formação da resiliência[12].
O acesso ao Ministério Público é feito de forma direta, privilegiando-se a opção de atendimento eleita pela vítima, desde que inequívoca a sua identidade (atendimento pessoal feito na Promotoria de Justiça ou por meio de videocolaboração[13]), sem prejuízo de um contato inicial efetuado por meio de ferramentas de chatbots ou outros meios de comunicação. A eliminação de barreiras pessoais e territoriais tem permitido o contato direto com vítimas que estavam relegadas a segundo plano, possuindo altas taxas de subnotificações no sistema de Justiça tradicional (vítimas de erros médicos, abusos sexuais praticados em contexto religioso, abuso sexual de coletivos vulneráveis, lesões corporais por dano psíquico, diversas formas de violências praticas contra a mulher, idosos, crianças e estrangeiros, dentre outros).
Com base nessa experiência prática e dogmática, elaborei o denominado “Anteprojeto de Lei de Estatuto de Proteção da Vítima”, que visa a instituição do Projeto de Avarc em todo o Brasil. São previstas medidas de proteção, defesa, saúde e assistência social às vítimas diretas, indiretas e coletivas de crimes.
Dentre os direitos da vítima destacados no anteprojeto podemos mencionar o acesso a práticas restaurativas levadas a cabo pelo Ministério Público, que, na qualidade de titular da ação penal e com legitimidade para a defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, atua em defesa do regime democrático e da ordem jurídica (por exemplo, conferências restaurativas vítima/ofensor, STAR, círculos, Ejustice, técnicas de mindfulness, aplicadas em coletivos vulneráveis e outras ferramentas que permitam a inclusão da vítima, do ofensor e da comunidade atingida pela prática do crime). A adesão da sociedade civil tem sido importante na implementação desse projeto, preenchendo-se verdadeira lacuna existente em nosso ordenamento jurídico: o estabelecimento dos deveres de solidariedade.
Dentre as inovações previstas no anteprojeto está a possibilidade de a vítima ser ouvida nas concessões de livramento condicional e pedidos de progressão de regimes de condenados nos casos de crimes graves ou de grande repercussão social, a obrigatoriedade da fixação de danos morais, psicológicos e materiais na âmbito extrajudicial ou judicial, a videocolaboração, sistemas de EJustice, bem como práticas restaurativas para lidar com os aspectos imateriais do delito, partindo-se da concepção do injusto restaurável.
Espera-se que, se convertido em lei, o anteprojeto de Estatuto de Proteção da Vítima estar-se-á dando um grande passo na capilarização do Ministério Público em âmbito nacional e internacional e adotadas medidas para o efetivo acolhimento de vítimas de crimes, restauração da confiança da sociedade, a fim de obter a almejada paz social.
[1] https://dicionario.priberam.org/v%C3%ADtima. Acesso em 4/7/2019.
[2] https://bancodeprojetos.cnmp.mp.br/Detalhe?idProjeto=2312. Acesso em 25/7/2019.
[3] SUMALLA, J.M.T. La victimología: cuestiones conceptuales y metodológicas. In:Manual de Victimología. Valencia: Tirant Lo Blanche, 2006, p. 29.
[4] BARGE, Elaine, Vila Star. Harissonbourg: Eastern Mennonite University, 2018.
[5] Idem, p. 4. Para a autora, o trauma de evento único pode ser natural ou causado pelo ser humano, existindo séria ameaça de dano ou morte (enchente, furacão, estupro, ataque individual). O trauma múltiplo e cumulativo provém de eventos múltiplos sem definição clara de início ou fim (racismo, exclusão, discriminação, perseguição, bullying, negligência, abuso, violência sexual, invasão, guerra).
[6] Idem, p. 5. Provém do fato de testemunhar a experiência traumática de outra pessoa.
[7] Resulta da participação ativa de causar danos a outros (idem, p. 5).
[8] Desconsiderando ou atacando o valor inerente de um indivíduo ou grupo (idem, p. 5).
[9] Se perpetua através de novas gerações, por exemplo, o legado da escravidão (idem, p. 5).
[10] Quando são feitas tentativas de destruição de parte ou de totalidade de uma cultura (genocídio). Práticas culturais que trazem danos a outros (cultura do estupro, assassinatos por vingança — idem, p. 5).
[11] Quando parte de uma sociedade ou comunidade vive em condições políticas, econômicas e sociais injustas, que colocam as pessoas em posição de desvantagem (apartheid, pobreza, racismo, sexismo).
[12] Idem, p. 4. Ao tratar do trauma individual, Barge destaca que muitos desses traumas podem ser coletivos. Para a autora, o trauma de evento único pode ser natural ou causado pelo ser humano, existindo séria ameaça de dano ou morte (enchente, furacão, estupro, ataque individual).
[13] Também conhecida pelo seu antecedente remoto denominado videoconferência.
Celeste Leite dos Santos é promotora de Justiça, doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), gerente e coordenadora do Projeto Avarc do MP-SP e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.
Clique aqui e leia o original no Conjur.
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