30 de outubro de 2018,

Por Maria Gabriela Prado Manssur

Desde o início da evolução humana, o papel das mulheres na sociedade se resumia às atividades reprodutivas e de cuidado (dar à luz, cuidado com os filhos, com a casa), atividades essas que não eram consideradas importantes economicamente. Por outro lado, os homens desenvolviam atividades remuneradas, pois recebiam um salário e com isso pagavam as contas da casa como alimentação, vestuário, energia elétrica, moradia, saúde, educação.

Sob esse ponto de vista, o trabalho exercido pela mulher dentro de casa era desconsiderado e desvalorizado, muito embora sabendo que sem esse papel importantíssimo os homens não conseguiriam sair para trabalhar, pois não existiria quem exercesse o cuidado com os filhos e com a casa. Mas, em um sistema capitalista, esse tipo de atividade desenvolvida pelas mulheres e denominada “trabalho reprodutivo social” não era considerada lucrativa, tampouco geradora de renda, mas, sim, um “não trabalho” .

Desta forma, o estereótipo do gênero feminino foi se desenvolvendo a partir do papel desempenhado pelas mulheres, no espaço privado e quase que imposto pela sociedade: não saíam para o mercado de trabalho, não lhes era permitido o direito e a oportunidade de desenvolverem atividades remuneradas e, portanto, numa sociedade capitalista, eram consideradas de menor importância.

Em contrapartida, permanecendo em seus lares, sem renda própria e muito aquém de obterem satisfação pessoal, elas se tornavam dependentes não só do ponto de vista econômico, como também psicológico: teriam essas mulheres que seguir as ordens dos seus companheiros sem nenhum tipo de autodeterminação e autonomia na administração dos lares e de suas vidas por serem consideradas “inativas economicamente”.

Consequentemente, o espaço público era destinado aos homens, e o espaço doméstico, às mulheres, havendo uma verdadeira naturalização desse conceito que justifica, em grande parte, uma desigualdade social, econômica e política estruturante e estrutural, com necessidade de correção.

Surge inclusive deste contexto um dos principais motivos que justifica o alto número de violência contra a mulher, muito relacionada aos estereótipos de gênero: a dependência econômica. Caso as mulheres não cumprissem com os papéis a elas destinados de “bela, recatada e do lar” e sem renda própria, eram maltratadas, humilhadas, controladas e, muitas vezes, agredidas física, moral, psicológica e sexualmente. Infelizmente, esse quadro ainda é muito visível nos dias de hoje, havendo uma forte ligação entre estereótipos de gênero, violência doméstica e mercado de trabalho.

Há pouco mais de 100 anos é que algumas pessoas reconheceram a violência de gênero como fenômeno social, passaram a debater o assunto e a se levantar contra esse modelo de sistema patriarcal pelo qual a sociedade foi fundamentada.

Movimentos sociais e o próprio movimento feminista, à época, exigiam uma abordagem concreta do assunto, com coleta de dados significativos e pesquisas de campo aprimoradas para se detalhar esse cenário de acordo com a realidade. A iniciação desse debate foi importante sob dois pontos de vista àquela época: por coletar, analisar, distribuir e divulgar índices até então abordados de maneira superficial no Brasil e por ser a porta de entrada dos estudos sobre mulher na academia brasileira.

Os principais rumos tomados pelo debate teórico acerca do trabalho doméstico da mulher brasileira, inicialmente, ficou centrado na “incorporação ou expulsão da força de trabalho feminina do mercado sob os efeitos do capital”. Porém, a pauta abriu espaço para mudanças significativas que são objeto da luta feminista, atualmente em busca de espaço igualitário no mercado de trabalho no que tange à ocupação de cargos de liderança, assédio no ambiente de trabalho, equiparação salarial e uma melhor distribuição dos trabalhos reprodutivos sociais que se somaram ao trabalho produtivo remunerado a, praticamente, todas as mulheres.

Mesmo que os movimentos feministas e a atuação do sistema de Justiça estejam em constante busca por equidade e igualdade em todos os espaços e aspectos econômicos e sociais, os índices de violência doméstica, física, moral, psicológica, sexual, simbólica, patrimonial e também intelectual contra as mulheres seguem altos.

A implantação da Lei Maria da Penha foi um marco histórico e prevê um importante conjunto de mecanismos necessários ao empoderamento feminino de mulheres que são ou foram vítimas de violência de qualquer natureza, confirmando que a independência e autonomia financeira é um fator que interfere drasticamente no desfecho do quadro de violência.

Com efeito, sem independência financeira, as vítimas seguem no relacionamento, mesmo que estejam claros os sinais de que romper a relação com o agressor é a única e melhor saída. Contudo, para conseguir se livrar do “ciclo da violência”, há necessidade de poder econômico e estabilidade financeira mínima.

Em um levantamento feito pelo Núcleo de Violência Doméstica da Promotoria de Justiça de Taboão da Serra (SP), entre os anos de 2012 e 2016, constatou-se que praticamente 30% das mulheres que sofrem violência e não denunciam estão em situação de risco pelo fato de dependerem economicamente dos companheiros, sem perspectivas e oportunidades de trabalho, tampouco de resgate da autoestima e coragem para saírem de uma vida marcada pela violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.

E não só isso: apurou-se, também, que as mulheres que sofrem violência acabam perdendo seus empregos ou são demitidas, em que pese a existência do artigo 9, parágrafo 2º, inciso II, da Lei Maria da Penha, que garante estabilidade no trabalho para as vítimas de violência. Mas pouco se fala sobre isso.

Dezoito dias por ano são as faltas atribuídas às mulheres vítimas de violência, o que gera um prejuízo anual de R$ 1 bilhão para a economia brasileira (Universidade Federal do Ceará, 2017 – Relatório da Violência Doméstica e seu impacto no Mercado de Trabalho e na Produtividade das Mulheres). E mais, essas mulheres sentem vergonha em assumirem que sofrem violência para seus empregadores e acabam não justificando as faltas, a baixa rentabilidade e falta de concentração, afetando em 50% sua produtividade: consequentemente, são demitidas ou pedem demissão, voltando para os braços de seus algozes.

Preocupado com esse quadro e buscando ações positivas no enfrentamento à violência contra a mulher, o Ministério Público do Estado de São Paulo, em cooperação com o Tribunal de Justiça, Defensoria Pública, OAB e ONU Mulheres e em parceria com a iniciativa privada, desenvolveu o Projeto Tem Saída, com o objetivo de inserir as vítimas de violência doméstica no mercado de trabalho com prioridade, encaminhando-as para empresas previamente treinadas e comprometidas com a prevenção e combate da violência contra a mulher.

A união de esforços entre os entes públicos, a esfera privada e a rede protetiva de direitos das mulheres tem feito com que muitas vítimas desenvolvam seus potenciais e talentos, ingressem no mercado de trabalho, conquistem autonomia financeira e vivam livre de qualquer tipo de violência, direito de toda mulher e compromisso do Estado Democrático de Direito. A oportunidade de trabalho para as vítimas é mais uma das formas eficazes de prevenção e combate à violência contra a mulher: sim, tem saída.

Bibliografia e fontes
BERTOLIN, P.T.M. “Mulheres na Advocacia: Padrões Masculonos de Carreira ou o Teto de Vidro”. Lumen Juris. São Paulo. 2017.
BRUSCHINI, C. Trabalho doméstico: inatividade econômica ou trabalho não remunerado? São Paulo, 2006.
Butler, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York and London, 2007.
FRANCISCO, B. L. C. “Mulheres no ministério publico: o conflito entre a realização profissional e realização familiar visto a partir de dados demográficos”. Editora APMP, São Paulo. 2008.
H SOUZA, M.; BARACHO, L. A Lei Maria da Penha: Égide, Evolução e Jurisprudência no Brasil. Minas Gerais: PUC Minas Serro, 2015.
BRUSCHINI, C. Trabalho feminino: Trajetória de um tema, perspectivas para o futuro. Rio de Janeiro, 1993.
http://www.justicadesaia.com.br/wp-content/uploads/2017/08/Relatorio-Violencia-Domestica-e-seu-impacto-no-Mercado-de-Trabalho-e-na-Produtividade-das-Mulheres.pdf

Maria Gabriela Prado Manssur é promotora de Justiça, membro do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) do MP-SP; coordenadora da Diretoria da Mulher (APMP) e associada do Movimento do Ministério Público Democrático.

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