Por Ivan Carneiro Castanheiro e Juliana Cristina Mansano Furlan

As questões ambientais vêm sendo motivo de preocupação e atenção nas últimas décadas no Brasil. Não alheios a essa realidade, os defensores do meio ambiental, profissional ou voluntariamente, numa árdua e constante luta, conquistaram uma das formas de efetivar a participação democrática, interligando as políticas públicas e a realidade dos interesses/necessidades do setor privado com os da população, por meio de debates/conciliações que geralmente ocorrem no âmbito dos Conselhos. Esses quase sempre conflitantes interesses, os quais primariamente deveriam convergir, possibilitando, ainda que em alguns casos timidamente, o desenvolvimento seja econômico, social e ambiental.

Como alavanca para se buscar o desenvolvimento ecologicamente sustentável, publicou-se a Lei nº 6.938/81 que, em função da instituição da Política Nacional de Meio Ambiente – PNMA, criou o Sistema Nacional de Meio Ambiente – Sisnama), objetivando gerar ferramentas de formulação e implementação para contribuições e construção das políticas públicas ambientais. Desta também foi gestado o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama).

A estruturação do Conama visava e deve continuar objetivando gerenciar a integração entre o poder público e a sociedade como um todo, buscando efetivar a participação social, de modo a permitir e garantir que todos setores da sociedade e da atividade econômicas estejam devidamente representados, debatendo e decidindo a formação das políticas públicas ambientais, como já se disse.

A troca de informações entre os atores econômicos, ambientais e membros do poder público federal, estadual e municipal, bem como a fiscalização, a educação, a sinergia e compartilhamento de dados entre si, visa garantir não só a efetiva governança.

A preservação do meio ambiente é direito e dever de todos, indiscriminadamente (art. 225 da CF), sendo o bem ambiental a todos pertencentes, cabendo ao poder público apenas gerenciá-lo. Nesse sentido devem ser interpretados os dispositivos constitucionais mencionando a expressão “domínio”, conforme pontifica a doutrina.

Entende-se que a participação social em Conselhos Federais, Estaduais e Municipais de Meio Ambiente e outros afins, a exemplo dos Conselhos de Desenvolvimento das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, com participação social e poder deliberativo e consultivo (arts. 7º e 8º do Estatuto da Metrópole – Lei 13.089/15); Comitês de Bacias Hidrográficas, com participação deliberativa e paridade na representação da sociedade civil, com pelo menos 50% dos votos (art. 39, § 1º da Lei nº 9.433/97); Conselhos Municipais de Defesa do Meio Ambiente, em geral com participação com poderes deliberativos da sociedade civil (Condemas), bem como os Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, nestes, em geral, havendo expressiva participação social.

O ideal seria que todos esses conselhos fossem deliberativos e não apenas opinativos. Entretanto, caso sejam opinativos, fundamental que as críticas, sugestões e/ou considerações dos conselheiros mereçam apreciação dos órgãos técnicos do Poder Executivo, além de apreciações pelos membros das comissões temáticas do Poder Legislativo respectivo, precedidos de suas respectivas assessorias técnicas legislativas, se houver, na última hipótese quando as políticas públicas tiverem de ser convertidas em lei.

Ainda que exercendo um papel relativo, nos vários e ainda existentes conselhos ambientais e afins, não basta existir tais espaços de debates, mas há que se implementar as estratégias de efetividade para gerar o necessário equilíbrio entre atividade econômica e meio ambiente, sem perder de vista que algum grau de poluição sempre ocorrerá, mas que se faz necessário o uso da melhor tecnologia disponível, visando atenuar as degradações ambientais, incorporando-se ao custo da produção a variável ambiental, o que se convencionou chamar de internalização das externalidades ambientais.

Esse novo cenário, ignorando as variáveis retrocitadas, com inadmissíveis retrocessos e gerando frustração jurídica-ambiental e social, é agravado com a edição do Decreto Federal nº 9.759, de 11 de abril de 2019, o qual extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu parcialmente medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6121, suspendendo a eficácia de dispositivos que extinguem colegiados da administração pública federal previstos em lei. Entretanto, por seis votos a cinco indeferiu a suspensão dos efeitos do Decreto quando o colegiado tenha sido criado por outro Decreto. Os votos vencidos dos ministros entendiam que haveria necessidade de especificação de quais eram os conselhos, comitês, comissões grupos etc que serão extintos, bem como haver discriminação dos motivos dessas extirpações. Entretanto, essa preocupante questão permanece indefinida até o julgamento final no Supremo, gerando insegurança jurídica e inconvenientes de toda ordem à gestão do sistema ambiental, para não dizer indesejáveis desmandos, cujos efeitos serão difíceis ou impossíveis de serem revertidos. Especialmente porque a natureza dificilmente se regenera integralmente, processo que é necessariamente lento, mesmo quando possível de ocorrer, enquanto a degradação e seus efeitos generalizadamente deletérios são praticamente instantâneos.

Fato é que o Brasil vivenciou, com a edição do Decreto 9.759/19, o que se pode denominar de retrocesso político-social, em todas as áreas, vez que em um ato que viola o princípio constitucional de participação e controle social nas políticas públicas de vários setores, inclusive na área ambiental. Não bastasse o ato normativo retrocitado, publicou-se o Decreto Presidencial 9.806, de 28/05/19, o qual altera a composição e funcionamento do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Dentre as alterações, estão novas regras de escolha e de duração do mandato dos conselheiros, que agora será feita por sorteio, comprometendo a capacidade de autodeterminação da sociedade, além de reduzir o mandato reduzido à metade, ou seja, para um ano.

Tal modificação garante ao governo federal a possibilidade de indicação de dez representantes, de um total de 23 membros do Conama, cujo colegiado antes contava com 93 conselheiros. Os demais setores e representantes inscritos serão sorteados, o que surpreendeu a todos do setor ambiental. Somados os votos de representantes do governo federal e de iniciativa privada, forma-se a maioria de 52,19%. Também houve retrocesso na participação social, com redução de 22 para 4 votos efetivos da sociedade civil, ou seja, algo próximo a 17,40% dos votos, bem como dos Estados (21,75%) e Municípios (8,70%), também muito enfraquecidos, juntos ficando com apenas 47,85%, ou seja, a minoria. Nessa nova composição, tais entes não terão forças para influir em decisões contrárias à política ambiental do governo central, ainda que possa ela estar equivocada, justamente no setor que representa o interesse de maior representatividade da coletividade.

O princípio da participação é um dos pilares do direito ambiental e envolve, de modo geral, a participação da sociedade na proteção do meio ambiente, por meio de propostas para as tomadas de decisões, crítica, sugestões e aperfeiçoamento das propostas advindas do poder público, colaborando assim para uma gestão mais aprimorada, em benefício de todos, pois o bem ambiental é difuso.

Além disso, mostra-se inconstitucional justamente por restringir a garantia da participação popular prevista na Carta Magna. Nesse sentido, confira-se o art. 216-A, § 1º, X, da CF/88, o qual prevê como princípio do Sistema Nacional de Cultura, dentre outros, a “democratização dos processos decisórios com participação e controle social”.

Acreditamos ser possível a reversão dos efeitos deletérios quanto ao decreto publicado, evitando mais um retrocesso na gestão ambiental, a qual vem sendo vítima de sucessivos desmontes quanto ao sistema normativo e fiscalizatório. Dentre as ameaças potenciais está a pretendida flexibilização do licenciamento ambiental (PL 3.729/04 prestes a ser votado na Câmara, em regime de urgência). Dentre as ameaças reais, podemos citar a extinção de órgão de gestão/defesa do meio ambiente, centralização na divulgação de informações (vide contato com a imprensa e divulgação de dados do Inpe, somente com o aval do Ministro do Meio Ambiente ou Presidente da República, respectivamente), impedimentos de apreensão/inutilização de bens relacionados com constatadas infrações ambientais e afrouxamento nas ações de fiscalização (restringindo poderes dos fiscais, não os aparelhando com equipamentos de última geração ou respondo aqueles que deixaram o serviço público por exonerações ou aposentadorias), possibilitando o aumento de desmatamentos e/ou queimadas, além de outros danos ambientais de menor visibilidade, mas nem por isso de menores impactos socioambientais.

Não há, ainda, a certeza da manutenção e dos efeitos do Decreto 9.806/19. A regulamentação administrativa de uma Lei (no caso a 6.938/81) é competência conferida ao Presidente da República, mas deve refletir a vontade e necessidade do povo e de seus representantes no Congresso Nacional, pois estes podem sustar os efeitos do ato do ordenamento jurídico que exorbitem o poder regulamentar (vide art. 49, V, da CF), e não pode haver abusos contra os princípios constitucionais e ambientais, até porque este é componente do sistema de direitos humanos.

A atual gestão federal, sem maiores preocupações com a defesa e preservação do meio ambiente, afugenta o capital externo, prejudica a imagem do Brasil e de seus interesses econômicos no mundo globalizado, além de refletir negativamente na própria economia brasileira, de maneira a deixar de ter o apoio até mesmo de alguns influentes representantes do agronegócio.

Com a flexibilização das regras de proteção ambiental, a responsabilidade civil ambiental continuará sendo objetiva por força do art. 225, § 3º da Carta Maior (reforçado pelo art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81) e exigirá dos agentes econômicos um bem estruturado e atuante sistema de “compliance”, zelando por um rigoroso controle de riscos, visando preservar seu patrimônio, a sustentabilidade financeira, sua boa imagem no mercado interno e externo, além, e principalmente, garantir a disponibilidade de matéria-prima para seu negócio. A maior parte desta vem dos recursos naturais (finitos), que a doutrina classifica como meio ambiente natural, ou seja: água (força motriz da economia), ar, solo, fauna e flora. Em suma, preservando-se os recursos naturais, preservam-se a própria atividade produtiva, ou seja, o desenvolvimento será não apenas ecologicamente sustentável, mas também economicamente, já que não há que se falar em desenvolvimento se não houver sustentabilidade em todo o processo produtivo, econômico e social.

Resumindo, o meio ambiente não é inimigo do homem, ele é o próprio homem, como bem disse a ministra do STF, Cármen Lúcia Antunes Rocha, em magnífica palestra proferida no III Congresso Brasileiro da Magistratura e do Ministério Público para o Meio Ambiente, na cidade de Araxá/MG, no dia 9 de agosto de 2019, promovido pela Abrampa (Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente), da qual resultaram diversas posições debatidas e pactuadas entre membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, na denominada “Carta de Araxá”.

Aliás, não se pode olvidar, como parece estar ocorrendo com alguns gestores que gerenciam e/ou disciplinam questões ambientais, que constitucionalmente a atividade econômica deve atender aos princípios da justiça social, da dignidade da pessoa humana e a defesa do meio ambiente, “inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação” (art. 170). Os agentes econômicos também devem atentar para o cumprimento das funções sociais da propriedade (aqui incluído os meios de produção), conforme disciplinam o arts. 5º, XXIII; 182, § 2º e o art. 186, este prevendo o aproveitamento racional e adequado da propriedade rural; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores – todos da Carta Magna. Deve o meio ambiente ser protegido por todos (poder público e particulares), não se admitindo retrocessos nessa política pública, que é uma das mais relevantes tarefas do poder público, a qual não é dado a nenhum governante deixar de cumpri-la.

Observa-se que independente da forma legislativa, seja por lei ou por decreto, a limitação de participação da sociedade civil em Conselhos Ambientais configura a perda da função de representação da coletividade, com ofensa ao art. 216-A, § 1º, X, da Carta Magna. Há que prevalecer o direito coletivo ao direito individual do empreendedor e o princípio do in dubio pra natura, acima de quaisquer interesses, inclusive porque envolve direitos das próximas gerações e perenidade da própria atividade econômica.

Conclui-se, portanto, que além das questões ideológicas, as quais até podem ser manipuladas para esquerda ou direita, a verdade é que os Conselhos Ambientais podem e devem auxiliar o gestor público, de qualquer matiz política, a não errar ou a errar menos nas tomadas de decisões e alterações legislativas, as quais envolvem os interesses supremos de toda a coletividade, não podendo eles serem extintos ou apequenados, sob pena de ofensa à Carta Magna.

Ivan Carneiro Castanheiro é promotor de Justiça do MP-SP, membro do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente em Piracicaba. Associado do Movimento do Ministério Público Democrático.

Juliana Cristina Mansano Furlan é advogada; membro da Comissão de Direito Ambiental de Americana; membro do Comitê PCJ; especialista em Gestão Ambiental e Sustentabilidade pela Esalq/USP; prof.ª de graduação e pós-graduação em Direito e Gestão Empresarial.

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