Celeste Leite dos Santos e Ministério Público Democrático

Com cerca de quinze dias de vigência, a Lei n. 14.811 de 12 de janeiro de 2024, que institui medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares, prevê a Política Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente, além de alterar dispositivos do Código Penal, Lei dos Crimes Hediondos e Estatuto da Criança e do Adolescente.

Isso porque o legislador não primou pela técnica seja ao estabelecer os tipos penais, ou mesmo congruência com o sistema educacional vigente no país. A título de exemplo, podemos mencionar o seu art. 2°, que estabelece: “As medidas de prevenção e combate à violência contra a criança e o adolescente em estabelecimentos educacionais ou similares, públicos ou privados, devem ser implementadas pelo Poder Executivo municipal e do Distrito Federal, em cooperação federativa com os Estados e a União”.

Em primeiro lugar, o artigo pode ser declarado inconstitucional, uma vez que o art. 205 da Constituição Federal prevê a responsabilidade solidária da União, Estados, Municípios e Distrito Federal na elaboração da política de educação. Ainda que se possa alegar que a municipalização das políticas educacionais trará resultados mais efetivos, ainda se tem interferência indevida do Município nas políticas educacionais do Estado, uma vez que não podemos esquecer que grande parte do ensino público hoje são disponibilizados por escolas estaduais.

Outra inovação do diploma legislativo se refere a criação dos crimes de “intimidação sistemática” (bullying) e intimidação sistemática virtual (cyberbullying), in verbis:

“Intimidação sistemática (bullying)

Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena – multa, se a conduta não constituir crime mais grave (grifamos).

Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)

Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real:

Pena – reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.”

Impende destacar que ambas as figuras típicas são expressamente subsidiárias e, portanto, são considerados tipos penais de reserva, já que existindo a prática de crimes mais graves fica expressamente afastada a sua aplicação.

O bullying encontra no ambiente escolar sua forma de manifestação. Por meio dessa conduta uma criança ou adolescente maltrata a outra, de forma continuada ou permanente por meio de perseguição física, verbal ou psicológica de um aluno contra outro. Trata-se de violência escolar sistemática que tem crescido exponencialmente no país. A vítima em geral não possui poder de decisão, sendo “presa fácil” ou vulnerável.

As novas tecnologias têm dado lugar ao denominado cyberbullying, tendo como meio de execução o envio de mensagens de e-mail intimidatórias, mensagens de texto, difusão de fotografias retocadas, difamação nas redes sociais e criação de perfis falsos com conteúdo agressivo ou humilhante para a criança ou adolescente. Nesse caso, a vítima não precisa ser necessariamente um colega de escola, dificultando sobremaneira a investigação criminal pelo espaço virtual em que é praticado. Os fatos se passam como um jogo em que o assediador nem sempre tem a exata dimensão do dano que provoca, eis que sua conduta está ligada a um “eu” virtual, um personagem ou papel interpretado na rede. Importante destacar a finalidade de humilhar, intimidar, envergonhar a vítima. Portanto, se faz necessária a ingerência penal para essas condutas.

Adotando-se um critério de interpretação sistemática podemos afirmar que se a conduta foi praticada no ambiente escolar, ainda que de forma virtual, o dispositivo aplicável é o art. 146-A, “caput” do Código Penal. Por outro lado, se a conduta não tiver vinculação com o ambiente escolar, como por exemplo, uma plataforma gamer, estar-se-á diante da prática da figura típica intitulada cyberbullying.

O tipo penal secundário do art. 146-A do Código Penal prevê apenas pena de multa. Portanto, há desproporcionalidade na gravidade da conduta eleita com a penalidade prevista como forma de repressão ao crime praticado e a prevenção à prática de novos delitos. Caso a conduta seja praticada por adolescentes, cumpre lembrar que se aplica a sistemática do Estatuto da Criança e Adolescente que prevê o sistema de aplicação de medidas socioeducativas e, portanto, não guardam correlação com a fórmula penal prevista. Caso praticado por um adulto estamos diante de típica hipótese de populismo penal, ou seja, previsão de nova forma de incriminação, mas sem efeito dissuasório real à prática do delito. Ainda o crime será julgado perante o Juizado Especial Criminal, por ser de pequeno potencial ofensivo, podendo obrigar a vítima a se submeter a uma audiência de conciliação cível com seu agressor (es) ou ainda a aplicação de outras fórmulas despenalizadoras como a transação penal.

Já o cyberbullying prevê pena privativa de liberdade de no mínimo dois anos e no máximo quatro anos. Embora a pena mínima seja inferior a quatro anos, nos parece que por se tratar de crime praticado com violência contra a pessoa não seria cabível o benefício do acordo de não persecução penal.

O mérito da nova lei reside em diminuir ou eliminar espaços de ausência de Direito. As crianças e adolescentes passam a ter assegurado o direito fundamental à segurança digital. O legislador perdeu a oportunidade de responsabilizar de forma clara a ausência de autorregulamentação adequada por empresas que fornecem meios digitais que podem ser utilizados como instrumentos para a prática de crimes.

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