BIANCA STELLA AZEVEDO BARROSO* 08 JANEIRO 2024 | 7min de leitura
Gostaria de tratar neste artigo sobre emancipação social das mulheres, ações e políticas afirmativas e democracia paritária. Mas não consigo. Não consigo porque ainda urge falar da arma de fogo que dispara contra a mulher, da faca que lhe corta o corpo, do sexo “viril” que lhe rasga as entranhas, extirpando a dignidade sexual delas. Não consigo porque as mulheres continuam a serem mortas por seus parceiros íntimos no meio da rua, à luz do dia, na frente dos vizinhos e sob olhos das câmeras. Não consigo porque falta liberdade para elas tomarem um banho de mar, sem o risco de serem perseguidas para ao final ter seu o corpo descartado sem vida em qualquer lugar. Não consigo porque uma mulher dormir com suas filhas em sua própria casa é um perigo. Que o diga a população de Sorriso no estado do Mato Grosso, que testemunhou um quádruplo feminicídio com crueldade e violência sexual. Há lágrimas em Sorriso/MT. Ainda não consigo porque o atlas da violência em 2023 comprova o aumento de feminicídios, dentro e fora das residências, além dos números crescentes de todos os tipos de violência contra as mulheres.
Então… vou tratar sobre violência contra a mulher, porque o assunto está longe de perder a atualidade. Infelizmente.
A 4ª edição do Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, 2023, traz a violência contra meninas e mulheres como problema global, apresentando achados dos quais destaco: 1) Estudo em 161 países, afirmam que 27% de mulheres entre 15 e 49 anos tiveram experiência de violência física ou sexual praticada por PARCEIRO ÍNTIMO; 2) Cerca de 43% das mulheres afirmam que sofreram algum tipo de violência por PARCEIRO ÍNTIMO; e 3) 76,4% das mulheres que sofreram violência dizem que o agressor era uma pessoa conhecida.
E aqui vai uma pergunta básica, mas que é o centro do nosso problema: Por que os homens matam, violentam e agridem as mulheres?
No mês em que é marcado o Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres – 06 de dezembro, trazido pela Lei nº 11.489/2007, em alusão a campanha internacional LAÇO BRANCO, iniciada por um grupo de homens que se posicionaram publicamente contra o assassinato de 14 mulheres em Montreal, no Canadá, ocorrido em 06 de dezembro de 1989, importa trazer os homens para o cerne da nossa problemática social de violência que atinge essa maioria vulnerabilizada.
Pois, se é verdade que existem homens que repudiam a violência contra as mulheres, também é verdade a dificuldade em identificar, de forma coletiva, onde estão eles. Isto porque, se não gostam de serem confundidos com a grande massa da masculinidade tóxica construída por uma sociedade estruturalmente discriminatória, sexista, machista, patriarcal e misógina, precisam sair da zona de conforto, ou seja, daquela situação confortável de quem acredita não ter a ver com isso porque nunca “deu uma tapa numa mulher”.
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Semelhante à questão racista, não basta não ser agressor precisa ser contra os agressores. Não basta não discriminar, precisa ser antidiscriminatório. Porque a questão não diz respeito só a você e sua conduta, mas se trata de uma ação mais ampla de espectro social que perpassa desde suas ações individuais a como você, cidadão, influencia nas ações dos outros. Se trata de ações miúdas que devem caminhar para a mudança de cultura.
Neste contexto, bem sabemos que normas e leis não são suficientes, mas nos socorre bem quando precisamos de fundamento para pôr em prática medidas obrigatórias com impacto social que funcionam como ações afirmativas reparatórias de distorções sociais, e neste caso, para trabalhar assimetria entre gêneros, políticas preventivas, e mudanças de comportamento.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, firmada em 1994, recomendou aos Estados adoção de medidas para modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens, de mulheres e, nos dias de hoje, de qualquer gênero, a fim de combater preconceitos e costumes que partam da premissa da inferioridade ou da superioridade de qualquer dos gêneros ou firmados em papéis sociais estereotipados para o homem e a mulher.
Trazendo essas diretrizes internacionais para ações mais concretas, o sistema de justiça tem formado paulatinamente grupos reflexivos masculinos, cujo objetivo inicial é trabalhar autores de violência contra a mulher, construídos como espaços de responsividade social, educação e reflexão sobre gêneros aliados ao conhecimento sobre direitos humanos.
Neste caminho, o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, bem como o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, órgãos constitucionais expoentes para estabelecer regras para todas as unidades da jurisdição brasileira, expediram recomendações para criação de programas voltados para homens agressores de violência doméstica.
De acordo com a recomendação do CNMP, os grupos reflexivos masculinos se mostraram altamente eficazes tanto para redução e prevenção dos crimes contra as mulheres como para eliminação da reincidência interferindo positivamente na mudança de comportamento.
O Centro de Estudos Jurídicos – CEJUR, do Poder Judiciário de Santa Catarina, realizou estudo em que mapeou 312 grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica, e, dentre vários indicadores, analisaram a efetividade dos trabalhos desenvolvidos, concluindo que os grupos não geram efeitos apenas entre aqueles que frequentam, mas seu potencial transformador se prolonga no tempo e espaço atingindo uma camada social mais ampla.
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Em comemoração aos 21 dias de ativismo pelo fim da violência contra a mulher, neste dezembro de 2023, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou um pacote de medidas de combate a violência contra as mulheres, inclusive o protocolo “não é não” para atender vítimas de assédio ou violência sexual em estabelecimentos de diversão, inspirado no protocolo “No Callem”, aplicado nem Barcelona, na Espanha. Ao total foram 08 projetos de lei aprovados voltados para o enfrentamento a violência contra a mulher.
Tratando-se de um fenômeno social complexo, cultural, transversal, interinstitucional e multidisciplinar, não haverá resultados enquanto parte expressiva dos homens continuarem a se divertir em grupos familiares com piadas sexistas, compartilharem conteúdos machistas e discriminatórios em redes sociais, reproduzirem clichês que desvalorizam o ser feminino.
E, o pior, essa reprodução quase automática de ações injuriosas, na maioria das vezes são disseminadas não por convicção própria do sujeito, que sequer refletiu sobre o conteúdo, mas movido por uma insegurança de seu próprio plexo de competências, pelo que necessita diminuir a importância do outro para se manter em seu espaço de privilégio garantido pelo manto simbólico do seu gênero.
Neste cenário de busca por uma convivência harmônica entre os gêneros e de um lugar seguro para que as mulheres possam se desenvolver como agente social ativo, lembro das palavras de Clarice Lispector na obra “A hora da estrela”: “Ela acreditava em anjo, e, porque acreditava, eles existiam”.
Se existem homens verdadeiramente comprometidos no enfretamento a violência contra a mulher, que eles apareçam através de novas formas de comportamento, seja na base comunitária, através de ações diárias interpessoais, seja na atuação macro com manifestações públicas e condutas condizentes com o discurso, pois, a solução passa pelos senhores, cavalheiros.
*Bianca Stella Azevedo Barroso, promotora de Justiça do Ministério Público de Pernambuco. Membro auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público. Coordenadora da Ouvidoria das Mulheres do CNMP. Coordenadora do GT Observatório do Ministério Público em Defesa da Democracia. Associada do Movimento do Ministério Público Democrático
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica
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