Por Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser
06/07/2023 | 05h00
Atualmente, observa-se o crescimento do pagamento eletrônico denominado “SEM PARAR”. Contudo, a questão que se apresenta, essencialmente, é saber se as cláusulas[1] constantes no contrato de adesão dessa prestação de serviço, em caso de inadimplemento, são ou não abusivas.
Quando as cláusulas limitativas dos contratos não estiverem de acordo com o estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, não só deverão ser interpretadas em favor do consumidor, mas, também, consideradas nulas de pleno direito por não obedecerem ao determinado pelas normas protetivas do consumidor e, por conseguinte, colocarem o consumidor em desvantagem excessiva. Não é demais lembrar que o artigo 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor, determina a nulidade de pleno direito das cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.
Na verdade, estamos diante de uma facilitação dos meios de pagamento em pedágios, estacionamentos e postos de combustíveis, mediante remuneração própria, não se tratando a empresa que explora o serviço “SEM PARAR” de instituição financeira ou administradora de cartão de crédito. Não existe possibilidade do consumidor parcelar os débitos ou ter prazos maiores que trinta dias para pagamento da fatura, como também não há concessão de crédito no mercado de consumo com limite pré-estabelecido, nem mesmo se permite a realização de saques a justificar qualquer equiparação.
Não convence a afirmação de que a cláusula contratual que autoriza a contratação de empréstimo ou emissão de título de crédito se dá no próprio interesse do consumidor. Primeiro porque, a inclusão da cláusula tem por objetivo garantir a continuidade da prestação dos serviços e evitar que eventual inadimplemento do consumidor prejudique o exercício da atividade negocial. Segundo, não é crível que se inclua cláusula, em contrato de adesão, para beneficiar exclusivamente o consumidor, como um “bônus contratual” em favor dele, ainda mais se tratando de empresa que indiscutivelmente visa lucro. Terceiro, induvidoso que a contratação de financiamento ou emissão de título de crédito é mais onerosa ao consumidor, em virtude da limitação de defesa e aplicação de taxas e encargos excessivos, cobrados por instituições financeiras, acrescido da multa de dois por cento.
Além do mais, em contrato de adesão, é manifestamente nula a cláusula mandato em favor do fornecedor, contra o próprio consumidor, vez que expressamente vedada pelo Código de Defesa do Consumidor diante do nítido conflito de interesses, afronta a autonomia da vontade e liberdade de contratar (art. 51, VIII)[2]. Do mesmo modo, é nula a cláusula que permite a emissão e apresentação de títulos de crédito representativos do débito em desfavor do consumidor, conforme a Súmula nº 60 do Superior Tribunal de Justiça[3].
Assim, não há dúvidas de que as cláusulas contratuais inseridas no contrato de adesão constituem desvantagem exagerada em desfavor do consumidor e comprometem o princípio da equivalência das prestações estabelecidas.
Ademais, esse contrato de adesão vai de encontro a toda principiologia de proteção ao consumidor, além de totalmente destoante da Lei nº 14.181/2021, que alterou o Código de Defesa do Consumidor[4] para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, quadro tão conhecido quanto atual na vida econômica do brasileiro cuja preocupação se assenta com maior razão em todo o mundo pós pandemia.
Vale lembrar que a liberdade econômica não pode ser exercida de maneira totalmente livre e a defesa do consumidor é igualmente princípio da ordem econômica, previsto no inciso V, do artigo 170 da Constituição Federal. Sendo assim, nenhuma atividade empresarial pode ser explorada de modo a afrontar os consumidores nos direitos a eles outorgados ou concedidos de forma voluntária.
Um aspecto fundamental a ser considerado é que o inadimplemento do consumidor se insere no risco da atividade econômica exercida e essa situação deve ser suportada integralmente pelo fornecedor, em razão de se beneficiar pela obtenção de lucratividade. E certamente o fornecedor, na estruturação de seu modelo de negócio, tem ciência das intercorrências que podem afetar o seu lucro, sendo estes elementos computados na precificação dos serviços ofertados no mercado.
É importante lembrar que o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgamento de recurso de apelação do Ministério Público, no dia 23 de maio de 2023, reconheceu a abusividade de cláusulas contratuais pela prestação de serviço de pagamento eletrônico “SEM PARAR”, conforme ementa abaixo:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Sentença de parcial procedência. Recurso de ambas as partes. APELO DO RÉU. Atribuição de efeito suspensivo ao recurso. Indeferimento. Ausência de demonstração de risco de dano irreparável. Artigo 14, da Lei nº 7.347/85. CERCEAMENTO DE DEFESA. Inocorrência. Contexto probatório suficiente para o deslinde da causa. MÉRITO. Nulidade de cláusulas contratuais. Reconhecimento. Abusividade configurada. Exigência de vantagem manifestamente excessiva em desfavor dos consumidores. A atividade das administradoras de cartões de crédito difere da praticada pelo réu. Vedada pelo Código de Defesa do Consumidor a existência de cláusula mandato em contrato de adesão, estabelecida em favor do fornecedor. Determinação de publicação da sentença condenatória proferida em sede de Ação Civil Pública em jornais de grande circulação. Possibilidade. Medida que visa dar conhecimento geral da condenação e desestimular a prática de novas condutas contrárias aos consumidores. APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Cabimento da condenação genérica prevista no artigo 95, do Código de Defesa do Consumidor. Necessidade de ressarcimento dos danos causados aos consumidores. Ausente comprovação de má-fé da parte ré, deve ser afastada, de ofício, a condenação ao pagamento de honorários advocatícios, por ser descabida, nos termos do entendimento do C. Superior Tribunal de Justiça. Apelo do Ministério Público do Estado de São Paulo provido e apelo do réu não provido”[5].
Logo, inconcusso que as cláusulas que permitem a contratação de financiamento ou emissão de título de crédito em nome do consumidor, em caso de inadimplemento dos clientes do sistema “SEM PARAR”, são abusivas e nulas de pleno direito.
[1]“9. FINANCIAMENTOS
9.1. Em caso de atraso no pagamento da fatura o CLIENTE autoriza expressamente a CONTRATADA a contratar financiamento bancário em nome do CLIENTE para quitar a fatura, desde que observadas as condições de financiamento (taxa de juros e Custo Efetivo Total) informados na respectiva fatura.
9.2. Para esse fim, o cliente desde já nomeia a CONTRATADA sua bastante procuradora com poderes especiais para, em seu nome e por sua conta, negociar e obter cré/dito perante instituições financeiras, outorgando-lhe poderes especiais para assinar contratos de financiamento, abrir conta para movimentar os valores financiados, acertar prazos, juros e ônus da dívida, repactuar taxas de juros, emitir títulos representativos do débito perante as instituições financeiras, ou ainda, substabelecer em todo ou em parte o mandato outorgado.
9.3. Uma vez contratado o financiamento, a CONTRATADA comunicará o CLIENTE, informando a data de vencimento.
9.4. O CLIENTE desde já autoriza a CONTRATADA a compartilhar os seus dados cadastrais com as instituições financeiras para a obtenção dos financiamentos, as quais poderão transmitir e consultar informações sobre o CLIENTE junto à Central de Risco de Crédito do Banco Central, utilizando tais informações, inclusive, para analisar o risco de crédito do CLIENTE; fornecer tais informações a terceiros contratados para prestar serviços de controle e cobrança; e levar eventuais contratos e títulos de crédito a registro perante quaisquer órgãos públicos, cartórios e instituições de custódia e liquidação de títulos.
9.5. A CONTRATADA, para a obtenção do financiamento do saldo devedor, poderá se constituir fiadora, avalista e principal garantidora do financiamento e juros incidentes, ficando estabelecido que, no caso de inadimplência, a CONTRATADA liquidará o valor do débito perante a instituição financeira, e se sub-rogará nos direitos daí decorrentes.”
[2]Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: VIII imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;
[3]Súmula nº 60 do STJ: É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste.
[4]Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: X – prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
Art. 5°. Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o poder público com os seguintes instrumentos, entre outros: VI – instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural; (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
[5]TJSP, Apelação Cível nº 1050996-15.2019.8.26.0100, Comarca: São Paulo, 15ª Câmara de Direito Privado, Relator: Des. JAIRO BRAZIL, j. em 23.05.2023.
*Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser, procuradora de Justiça / Ministério Público do Estado de São Paulo e associada do Movimento do Ministério Público Democrático
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)
Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica
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