Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser 26 Janeiro 2024 | 13min de leitura

A Constituição Federal de 1988 traz a promessa de proteger e fomentar, legalmente, todo patrimônio histórico-cultural brasileiro.

Nesta linha, o artigo 216 da Carta Magna[1] cuida de explicitar que a cultura compreenderá bens de natureza material ou imaterial, considerados individualmente ou em conjunto, tudo aquilo que remeta à identidade, à ação, em virtude da preservação da memória dos diferentes grupos formadores da sociedade e cultura brasileira. Desta feita, há que se reconhecer que tal concepção, em decorrência de sua amplitude, inclui objetos móveis e imóveis, documentações, edificações, criações artísticas, científicas e/ou tecnológicas, conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Ainda, o artigo 23, incisos I, III e IV da Carta Magna estatui que “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I – zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público; …III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural …”.

O tombamento é um ato administrativo realizado pelo poder público com o objetivo de preservar, através da aplicação de legislação específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados.

Outrossim, o tombamento pode ter por objeto bens móveis e imóveis que tenham interesse cultural ou ambiental para a preservação da memória e outros referenciais coletivos em diversas escalas, desde uma que se refira a um Município, como uma em âmbito mundial. Estes bens podem ser: fotografias, livros, acervos, mobiliários, utensílios, obras de arte, edifícios, ruas, praças, bairros, cidades, regiões, florestas, cascatas.

Para BÁRBARA LEÔNIA FARIAS BATISTA GOMES[2], o tombamento trata-se de um procedimento administrativo tal qual deve passar por uma série de atos até sua conclusão, com sua inscrição ou registro no Livro do Tombo. A lei não apresenta um procedimento padrão, embora descreva alguns atos indispensáveis para a organização do instituto. A não observância dos preceitos legais para sua realização gerará vícios formais passíveis de nulidades.

Segundo MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO[3], o instituto do tombamento configura modalidade de intervenção do Estado em qualquer tipo de bem, dentre eles móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, públicos ou privados, em virtude da preservação do patrimônio histórico ou artístico cultural. Pode-se considerar requisitório de tal preservação o bem cuja conservação seja de interesse público, seja por sua vinculação a fatos memoráveis da história brasileira, ou por seu grande valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. O ideal num processo de tombamento é que não se tombem objetos isolados, mas conjuntos significantes.

Quanto à competência legislativa do ato de tombamento, tem-se que na esfera federal, o tombamento é realizado pela União, através do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Na esfera estadual, realiza-se pela Secretaria de Estado da Cultura – CPC. Já na esfera municipal, é realizado quando as administrações dispuserem de leis específicas. O processo de tombamento poderá ocorrer inclusive, em âmbito mundial, o qual será realizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, cujo bem será reconhecido como Patrimônio da Humanidade.

Com a promulgação da Constituição de 1988, o inventário foi expressamente reconhecido como um instrumento jurídico de proteção do patrimônio cultural, juntamente com o tombamento, a desapropriação, os registros e outros meios de tutela, não apenas uma catalogação de bens voltada para a indicação de tombamentos.

Nessa linha de pensamento, MARCOS PAULO DE SOUZA MIRANDA[4] aponta que o inventário cultural, constitucionalmente, configura forma autônoma e autoaplicável de preservação do meio ambiente cultural, integrando cadastro de bens de valor sociocultural.

O instituto do inventário cultural não é regulamentado infraconstitucionalmente no âmbito nacional, levando à falta de normas que discernem sobre seus efeitos.

Diante do cenário apresentado, na mesma esfera, eminente a falha da norma infraconstitucional federal em dispor sobre o inventário, na condição de instituto de preservação do patrimônio cultural, caberá aos demais entes federativos, fulcrados na mens legis contida no artigo 216 da Constituição Federal, legislar sobre a proteção e conservação de seus patrimônios histórico-culturais.

O principal objetivo da medida de inventário é a apreciação do bem, no qual se faz necessário conhecer seu fundamento e, posteriormente, um pedido de tombamento. Contudo, o pedido de tombo não é consequência imediata, ou seja, é possível que, após estudo executado pelo instituto específico, determinado bem não seja passível de tombamento, mostrando, destarte, incoerência quanto ao atrelamento do efeito de restrição da propriedade ao ato de inventário. A falta de normas infraconstitucionais que regulamentem o instituto do inventário não privará o Poder Público de utilizar-se de tal instrumento como forma de fonte de conhecimento dos bens culturais tidos como patrimônio. Desta forma, pode-se afirmar que tal ato gerará insegurança jurídica, uma vez que o inventário se encontra previsto constitucionalmente como prática regular partida de órgãos preservadores de patrimônio.

O instituto do registro tende a tratar dos bens de origem imaterial (aqueles cuja existência depende da contínua ação humana, ou seja, o conjunto das práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas). A finalidade principal do instituto do registro é manter a memória dos bens culturais e de sua trajetória ao longo tempo, uma vez que este é o mecanismo capaz de assegurar a sua preservação, possibilitando, ao mesmo tempo, da melhor forma possível, um amplo acesso público.

A principal distinção entre tombamento cultural e registro cultural são os livros nos quais cada bem correspondente ao seu respectivo instituto será inserido. Isto é, os bens de cunho material que foram selecionados para o ato do tombamento, serão inscritos nos Livros do Tombo. Quanto aos bens de cunho imaterial, terão sua inserção nos Livros do Registro. Enquanto o tombamento possui um controle público do bem cultural, de forma permanente, através de autorizações e sanções, o registro não possui tal sistema de controle ou intervenção estatal na vida de seu bem cultural.

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O Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/01 – em seu artigo 2º, inciso XII, elenca, dentre as diretrizes gerais da política urbana, a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.

A propósito da regulamentação urbanística, cumpre-nos lembrar a lição de HELY LOPES MEIRELLES[5]:

“Daí por que a administração e o ordenamento da cidade são atribuições municipais, completadas pelo controle da construção que o Código Civil sujeita aos regulamentos administrativos (art. 1299 CC), que outra coisa não é senão a regulamentação edilícia da construção particular. Fiel à orientação doutrinária e ao Direito legislado, nossa jurisprudência sempre reconheceu e proclamou a legitimidade das imposições urbanísticas pelos Municípios no ordenamento urbano e no controle da edificação, e o fez na amplitude deste aresto do STF: “A autoridade municipal pode dispor sobre a segurança dos edifícios, sua harmonia arquitetônica, alinhamento, altura, ingressos, saídas, arejamento, enfim acomodações às exigências que a vida humana, nas grandes cidades, vai tornando cada vez mais difícil” (RT 248/675)”.

Nesse passo, cumpre assinalar que o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já decidiu pelo regime da solidariedade na quadra da preservação do patrimônio cultural.

“APELAÇÃO – AÇÃO CIVIL PUBLICA AMBIENTAL – Procedência – Condenação solidária do Governo do Estado de São Paulo, Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto e da empresa proprietária do imóvel a efetuar restauro do bem tombado – Admissibilidade – Os Poderes Públicos Estadual e Municipal, responsáveis pelo tombamento do imóvel em questão, deixaram de zelar pelo patrimônio cultural, ao se omitirem no dever de fiscalizar a integridade do bem tombado, de forma que devem responder solidariamente pelo dano ambiental, ainda que de forma indireta, pela omissão – De outro lado, correta também a condenação da empresa proprietária do prédio, pois, além de o bem ter permanecido todo o tempo sob sua posse e administração, não ficou demonstrado nos autos que tenha informado o Poder Público quanto à insuficiência de recursos para tanto, conforme estabelece o art. 19 do Decreto-Lei n° 25/37 – Contudo, cabível dilação de prazo para a entrega do projeto e das obras de restauro, já que aquele fixado pela r. sentença mostra-se muito exíguo – Redução da multa diária para o caso de inadimplemento da obrigação – Recursos parcialmente providos.

 […]

A questão relativa à responsabilidade solidária dos Poderes Públicos Municipal e Estadual foi bem analisada na r.sentença, observando o ilustre Sentenciante:

“A responsabilidade do Poder Público, tanto o Municipal como Estadual, apoia-se em vários fundamentos. Com o ato de tombamento há uma intervenção do Estado na propriedade privada, catalogando e protegendo o patrimônio histórico, cuja conservação é de interesse público (art.1º, Decreto-Lei n. 25/37). Se o próprio ente público emite esta declaração, afirmando, em nome de todos administrados, que aquele bem deve ser preservado, diante de seu reconhecido valor cultural, seria incoerente imaginar que o mesmo ente não assuma a responsabilidade por sua conservação. Tornaria inócua a imposição feita ao particular proprietário.” (fls.369/370).

[…]

O art. 216, § 19, da Constituição Federal, prevê que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

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Nesta esteira, não há que se imputar apenas ao proprietário, na qualidade de administrador do bem tombado, os encargos de sua conservação.

Sobre a questão:

[…] (Apelação cível n. 531 721 5/6 – 00 – SÃO JOSÉ DO RIO PARDO, rei. Des. ANTÔNIO CELSO AGUILAR CORTEI, SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO, CÂMARA ESPECIAL DO MEIO AMBIENTE).

No corpo deste v.acórdão está explicitado:

“O tombamento por ato do Poder Executivo estadual implicou assunção de responsabilidade pela preservação do bem tombado e de seu entorno imediato, de modo que as Administrações Públicas do Estado e do Município passaram a ter a obrigação de vistoriar periodicamente esse bem de interesse público e de provisionar verba para sua conservação, à vista, ainda, do disposto nos artigos 23, III e IV e 30, IX da Constituição Federal, nos artigos 260 e 261 da Constituição Estadual e no artigo 207 da Lei Orgânica Municipal. O descumprimento desse dever dá ensejo a ação judicial e a legítima intervenção do Poder Judiciário, no exercício de suas atribuições constitucionais, para fazer cumprir a lei. Não se trata de intervenção ilegítima de uma esfera de Poder em outra, mas de efetiva aplicação do sistema republicano de contra-pesos e auto controle do Estado pela tripartição de poderes. Não há criação de obrigação nova, mas determinação de cumprimento de obrigação já existente, em prazo razoável. A prioridade ficou estabelecida pela própria Administração Pública ao decidir fazer o tombamento e a necessidade de reparos ficou demonstrada pelas fotografias e manifestações técnicas de fls. 205/209 e 299/317, não infirmadas pelos requeridos.”

Assim, sendo observada a necessidade da execução de obras urgentes no bem tombado, o Poder Público, através de órgãos de sua administração, pode intervir na propriedade para a realização dos serviços de recuperação, independente, inclusive, da situação financeira do proprietário, ante o relevante interesse público na preservação de imóvel com valor cultural, como no caso dos autos. […]”[6].

Estamos diante da relevância do bem cultural – bem difuso de que usufrui toda a sociedade –, e o correlato dever de todos – sociedade, Estado e proprietário – de preservar esse mesmo bem.

[1]”Artigo 216 da CF/88: constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. § 1° O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2° Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos na forma da lei. § 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”.

[2]Importância do Instituto do Tombamento para o Direito Ambiental. Disponível em:. Acesso em: 19 jul. 2016, p. 4.

[3]Direito Administrativo. 26ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

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[4]O inventário como instrumento constitucional de proteção ao patrimônio cultural brasileiro in Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 7, nº 54, fevereiro de 2002.

[5]Direito Municipal Brasileiro, 14ª. edição, São Paulo: Malheiros Editores, p. 544.

[6] TJSP, Apelação Cível nº 632.326-5/0-00, 9ª Câmara de Direito Público, Relator Des. Sergio Gomes, julgado em 12/11/2008.

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica