Por Pedro Barbosa Pereira Neto*
31/08/2023 | 07h55

É falsa a percepção de que haveria uma dicotomia entre segurança pública e direitos humanos. Explorada por aqueles que insistem em reduzir o papel dos direitos humanos a uma perspectiva “esquerdista”, a mensagem matiza os esforços de muitos de fazer crer à população que o enfrentamento ao crime – a certos crimes, bem de ver! – não deve estar condicionada aos rigores da lei. Não por acaso, essa forma de ver as coisas tem recebido o beneplácito de boa parte da população, que acolhe o bordão “bandido bom, é bandido morto”. E o bordão é reforçado quando um Governador de Estado declara, em alto e bom som, exitosa uma operação policial que redundou, num primeiro momento, em 16 pessoas mortas, como se viu na recente operação de forças policiais, no Guarujá.

Isso não é de hoje, nem de ontem, e tampouco se limita a este Estado. Está incrustado na forma de ser do Estado brasileiro. Uma das maiores deficiências da redemocratização do país foi a de que, apesar da CF/88, manteve-se intacta a construção ideológica de que a sociedade possui “inimigos” e que esses têm que ser combatidos a ferro e fogo.

Convivemos com esse elemento degenerador do Estado Democrático de Direito, porque não conseguimos incluir todos na ideia fundamental de que os cidadãos, quaisquer que sejam sua raça, origem, condição social e os crimes que cometeram, possuem direitos à mesma proteção jurídica do Estado. Esse, o paradoxo do Estado de Direito no Brasil: temos uma Constituição inclusiva que acolhe todas e todos, mas sua operatividade por parte das instituições de Estado discrimina cidadãos.

No caso das forças policiais, isso é eloquente. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 83% dos mortos pela polícia em 2022 eram negros, 76% tinham entre 12 e 29 anos. Jovens negros, majoritariamente pobres e residentes das periferias seguem sendo alvo preferencial da letalidade policial.

O dado estatístico sugere, com boa dose de evidência, que as polícias brasileiras, consciente ou inconscientemente, têm alvos preferenciais.

Episódios brutais se repetem com frequência assustadora no país. Nas semanas que se seguiram à chamada operação “Escudo”, no Guarujá, houve casos semelhantes no Rio de Janeiro e em Salvador. Resultado: 45 pessoas mortas! Isso não pode ser normalizado, e não pode ser considerado mero dano colateral.

O monopólio do uso da força tem ser controlado, asserção válida para todas as democracias. As terríveis forças que habitam o homem e que são liberadas nesses momentos de crise devem ser cuidadosamente contidas. Em passagem clássica de “O Federalista”: “Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos. Se os homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam os controles internos e externos”.

O Ministério Público tem uma função central na contenção da força policial, seja como fiscal da lei, seja como defensor do regime democrático ou responsável pelo controle externo da atividade policial. Mas para que possa honrar a confiança que a CF/88 nele depositou precisa enxergar essas populações. E para ver essas pessoas, invisíveis para boa parte da sociedade brasileira, é necessário um olhar educado e desimpedido, que seja suficientemente firme para superar o abismo forjado em parte da sociedade que insiste em não ver que os direitos consagrados na Constituição da República e nas leis pertencem a todos, sem exceção.

Leio no jornal dessa semana, a propósito da operação “Escudo”: “O corpo do encanador Willians dos Santos Santana, 36, foi entregue à família com um ferimento no rosto, um hematoma na cabeça, as unhas das mãos arrancadas, cortes e perfurações nos braços. Ele foi morto por policiais militares na tarde do último dia 18, com seis tiros de pistolas, dentro do barraco em que morava na ponta da praia de Perequê, em Guarujá”.

Isso tem que ser visibilizado, tem que ser investigado, não pode ser esquecido.

O descompasso entre a lei e a prática policial nessas incursões nos cantos periféricos do Brasil abre uma fenda irrevogável na integridade do sistema de justiça, que, ao contrário do que se pensa, apenas retroalimenta a violência urbana de que todo o país é vítima. Afinal, como lembra Oscar Vilhena, “Para muitos que não experimentaram a sensação de serem tratados com igual consideração e respeitos por aqueles responsáveis por aplicar a lei e pela sociedade em geral, não existe razão alguma para que ajam em conformidade com o Direito”.

Um silêncio atordoante se seguiu no país após as 45 mortes, com as exceções de praxe. Um silêncio sorridente, como na música de Caetano de Veloso (Haiti). Como para lembrar que o Ministério Público tem uma missão hercúlea pela frente, porque a sensação de que a justiça, mais uma vez, não será feita é grande.

*Pedro Barbosa Pereira Neto, procurador regional da República e membro da diretoria do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica