Por Ricardo Prado
Professor de Direito Penal
O senhor Secretário da Educação do Estado de São Paulo acredita que não. Resolveu dispensar, por vontade própria, mais de 10 milhões de livros que deveriam ser distribuídos para os alunos da rede pública. O Estado de São Paulo ficaria de fora do programa nacional de livros, pela primeira vez em 80 anos, segundo notícia publicada pela imprensa. Embora sejam mais de 1,4 milhão de alunos, segundo a FOLHA, o senhor Secretário acredita que 20 mil celulares doados pela Receita Federal são suficientes para suprir a demanda; além, é claro, de alguns equipamentos eletrônicos que pretendem vender ao governo do Estado.
Alguns governos totalitários ficaram famosos por queimarem livros em praça pública. Ainda na atualidade, há governos, igualmente totalitários, do outro lado do Globo, que odeiam livros, e impedem que uma parte da população tenha acesso a eles, especialmente as mulheres. Mas, que isso viesse a ocorrer no Brasil, em pleno terceiro milênio, no Estado mais rico do país, é absolutamente inusitado.
Faltam verbas para comprar os livros? Parece que não, afinal, os livros são oriundos do governo federal, o estadual não teria desembolso.
Hora, se não falta dinheiro para a aquisição. Aliás, esse argumento sequer deveria ser considerado diante do valor cultural dos livros, mas como estamos num regime capitalista, necessário se torna analisar. Se não falta dinheiro, por qual motivo não se quer os livros?
Bem, dizem que é porque se pretende vender uns equipamentos eletrônicos para o governo do Estado e esses equipamentos devem tornar os livros desnecessários. Problema de concorrência? Se há livros, não precisa da parafernália eletrônica; então, para justificar o negócio (“investimento”), é preciso tirar os livros da frente.
Como a coisa toda pegou muito mal, a imprensa noticiou bastante e os comentários não foram os melhores, passou-se a procurar outras justificativas. O problema é que aí ficou pior.
Veio a alegação de que o material eletrônico poderia ser impresso, se necessário for. Como há alunos que não tem acesso à internet, veio a ideia de distribuir os 20 mil celulares, doação da Receita Federal (apreendidos), como se eles fossem suficientes dentro dum universo de 1,4 milhão de alunos.
Aliás, países europeus já começam a proibir o uso de celulares em salas de aula, pois, restou demonstrado que eles pioram o aprendizado. Os alunos não prestam atenção às aulas, ficam se divertindo com o celular.
O caso todo é surreal. Veio até a alegação de que os livros atuais são superficiais, de conteúdo ruim, assim, o material estaria sendo produzido pela própria Secretária de Educação.
Ora, os livros, que seriam dispensados, foram produzidos por muitas mãos ao longo de muitos anos. Todo esse trabalho coletivo, de décadas, seria jogado no lixo em troca de apostilas que serão produzidas a toque de caixa. Será mesmo que conseguirão produzir um material melhor em tão pouco tempo, e com um grupo muito reduzido de pessoas. É verdade, alguns se consideram a nata da sociedade, mas será que são mesmo? Será que seus interesses são os mesmos do restante da população.
Se são melhores, qual o medo da concorrência? Mantenham os livros, e ofereçam o seu produto. A população e as escolas que escolham. Aliás, se vem para agregar, por quais razões não se oferece ambos? O mundo físico e o digital são complementares, um não exclui o outro.
Por maior deslumbramento que o mundo digital cause nesse momento da história, a verdade é que ele não pode prescindir do mundo físico preexistente. O mundo digital veio criar novas possibilidades, mas não extinguiu, nem irá extinguir as casas reais, a alimentação, as rodovias, os museus, as relações pessoais, e muito mais. Não irá substituir os livros. Poderá fazê-los em formato digital, poderá concorrer, complementar, mas, dificilmente, irá substituir.
Para textos curtos, o formato digital até se revela bastante eficiente; mas textos longos, nada como se sentar confortavelmente com um bom livro (de papel) nas mãos.
Paixão pela antiguidade, talvez.
A atenção parece repousar melhor sobre a luz refletida do papel do que sobre a luminosidade excessiva do computador, do tablet ou do celular.
O celular, então, é um desastre. O volume de notificações chamando nossa atenção o tempo todo, criam uma concorrência nefasta, impeditiva para a concentração.
O computador é um excelente instrumento de trabalho; como o celular é um excelente instrumento de comunicação, mas querer que ocupem o lugar dos livros, não, não foram feitos para isso. Possuem outras utilidades.
Bem, mas, e os tablets, eles foram feitos para a leitura. Foram, mas ainda não superam os livros nessa questão. Podem servir para completar. Permitem levar uma pequena biblioteca infinitamente mais leve. Livros para consulta. Mas, bastou faltar energia e ele te deixa na mão. Um problema tecnológico, e você precisará de um técnico para resolvê-lo. Enfim, há inúmeras questões que impedem, nesse momento da história, que o tablet substitua os livros.
Num futuro, quem sabe. O que fica claro é que interesses comerciais parecem estar se sobrepondo aos interesses educacionais e culturais.
Aliás, uma substituição dessa envergadura deveria ser antes discutida com a comunidade, discutida com os interessados. Os alunos, os professores e a direção das escolas deveriam ter o direito de se manifestarem antes de uma decisão desse quilate.
Repito, trazer material complementar, inovações, boas propostas, não há empecilho algum; mas retirar o que está funcionando para substituir por algo incerto é de um absurdo à toda prova.
Prova. Verdade, falaram também que isso era necessário para padronizar a prova, padronizar o currículo, padronizar os estudos, padronizar as mentes, padronizar os gostos, os gestos e tudo o mais. Humanos ou máquinas, o que sois?
Talvez, o senhor Secretário não tenha assistido o clássico filme de Charles Chaplin: Tempos Modernos.
Se o tivesse, não teria cogitado de tamanha bobagem.
Os livros foram responsáveis por arquivar e manter a maior parte da cultura humana, por registrar nossa história, por permitir nossos debates públicos e auxiliar no progresso da ciência, os livros foram responsáveis pela educação e a cultura de muita gente, por momentos de lazer e diversão; os livros são parte integrante do nosso desenvolvimento, um dos grandes instrumentos criados pela humanidade. Responsável, em grande parte, pela perpetuação e aprimoramento da humanidade.
Bem, mas parece que para alguns, que se autointitulam de modernos, nada disso importa.
Puro saudosismo.
Ou será que a destruição dos livros é um projeto de perpetuação no poder. Com um tablet em mãos, você é refém de terceiros (o dispositivo eletrônico é gerenciado nas nuvens por alguém que você não controla). Os livros que tenho em minha casa, posso ler, durante o dia, sem precisar de energia elétrica, sem precisar de um dispositivo eletrônico, e sem precisar de permissão de qualquer companhia monopolista do mercado (as donas das nuvens).
Afinal, o saber permite que a pessoa se destaque, permite que seu trabalho tenha valor, permite que saibamos avaliar as propostas que nos chegam, confere conhecimento, poder de escolha, discernimento, liberdade e autonomia. Quem quer criar cordeiros, não precisa de livros. Todavia, não creio que os humanos queiram virar cordeiros.
Aliás, as últimas notícias dão conta de que na tal apostila eletrônica até a autoria da Lei Áurea foi modificada, a princesa Isabel desaparecerá da história (vide ESTADÃO, “Cai coordenador pedagógico da Educação de SP, nº 2 de Feder, após crise dos livros didáticos”, por Renata Cafardo em 06/09/2023).
Sequer a notícia de que o Secretário foi obrigado a voltar atrás em parte de seu projeto de cancelar os livros, ante a reação da imprensa, da comunidade acadêmica e do Ministério Público, isso não apaga a tentativa de colocar o Estado num período de trevas em benefício de alguns.
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