Por Pedro Barbosa Pereira Neto*
22/06/2023 | 05h00

O primeiro caso judicial que pode trazer consequências aos direitos políticos de Jair Bolsonaro deve  ter seu julgamento iniciado nesta semana, no Tribunal Superior Eleitoral. Trata-se da ação de investigação judicial eleitoral em que o PDT representa o ex-PR por abuso de poder político, imputando-lhe o uso da estrutura de poder para deslegitimar o processo eleitoral brasileiro em reunião com embaixadores estrangeiros, no Palácio do Planalto, em evento que contou com ampla divulgação inclusive em TV estatal. A importância do caso é sem precedentes: julgada procedente a demanda, será a primeira vez, em mais de 90 anos da Justiça Eleitoral, que teremos um ex-PR com direitos políticos cassados por ilícito eleitoral. Será o primeiro round de uma longa batalha pela democracia.

Os anos 2018-22 foram particularmente difíceis para a democracia reconquistada nos anos 80 e aparentemente consolidada com a Constituição de 1988. O sistemático e inaudito ataque ao regime democrático, incluindo a tentativa de deslegitimação do processo eleitoral, vindo especialmente do principal mandatário do país, desvelou como nunca as bases frágeis em que se assentava a democracia brasileira. Que o diga o 8 janeiro de 2023, em Brasília, e o conteúdo do celular do tenente-coronel Mauro Cid. Nunca a democracia brasileira precisou tanto de suas instituições para a defesa da democracia. Algumas, como se sabe, falharam miseravelmente. Outras, como o STF, tem cumprido seu papel, a despeito do estresse institucional que o excesso de protagonismo inevitavelmente  carreta, especialmente quando outros órgãos desenhados para a defesa da democracia deixaram-no órfão nessa missão. Não há nada a comemorar ainda, mas, se a democracia vencer os extremistas e a obscuridade instalada no poder em 2018, é de justiça reconhecer que sem algumas instituições isso não teria sido possível.

A Justiça Eleitoral, tendo na cúpula o Tribunal Superior Eleitoral, com sua atribuição de órgão organizador, fiscalizador e regulador do processo eleitoral, e ainda com competência para julgar ilícitos/crimes eleitorais, tem papel de destaque nessa quadra histórica. Sua criação em 1932 e constitucionalização em 1934, seguida da expertise acumulada pela organização e fiscalização de eleições que tiveram lugar entre 1945 e 2022 – dentre eleições municipais, estaduais e nacionais – e malgrado as interrupções do processo democrático nesse período, inscreveram-na no patrimônio constitucional do país. De suas bases fincadas na Constituição da República decorre sua força  institucional. Ao contrário de outros países, todas as controvérsias eleitorais, das mais simples às mais complexas, foram afetadas a um ramo especializado do Poder Judiciário, e com isso garantiu-se a imprescindível independência e autonomia frente a outros poderes e às forças privadas. Essa arquitetura  constitucional se revelou modelar na resistência ao assédio que o governo eleito em 2018 desferiu contra diversos órgãos do Estado brasileiro, inclusive o TSE. Basta lembrar as invectivas contra a urna eletrônica, em que o governo derrotado em 2022 mobilizou até mesmo integrantes do Exército Brasileiro na sua sanha de deslegitimar o processo eleitoral. O presidente do TSE à época – é bom não esquecer – era xingado em público pelo então PR.

Se fosse outro o modelo adotado de órgão incumbido da fiscalização do processo eleitoral – por exemplo Comissões Eleitorais como existem em outros países, sem as garantias que assiste ao PJ – muito provavelmente as forças do obscurantismo a teriam vergado, como outros tantos órgãos e instituições se curvaram e encolheram no período.

Não é de pouco significado institucional, portanto, que um ex-PR possa vir a ser sancionado no seu direito político-eleitoral apenas 6 meses após deixar o mandato. Isso mostra que a reação democrática tem encontrado eco nas instituições do país, e isso, a despeito de tudo, demonstra resiliência da democracia brasileira ancorada na CF/88. Mas os golpes desferidos contra a ordem democrática desde as eleições de 2018 foram duros e persistentes, e se espraiaram na sociedade brasileira, tendo adeptos em setores da sociedade civil, da segurança pública e do próprio Exército. Há muito a se fazer para restaurar a plenitude democrática. Mas esse longo processo passa, primeiro, pela devida responsabilização daqueles que atentaram contra a ordem democrática, sem o que nenhuma restauração da democracia é possível. Como disseram Ademar Borges e Alaor Leite, em artigo publicado no Estadão¹, “A sanção jurídica é a justa resposta das democracias combativas – que permitem muito, mas não perdoam tudo. Entre nós, a sanção é condição de possibilidade para todo o resto. Cumpri-nos punir os responsáveis nos termos da lei, seja para aprisionar o passado ao passado, seja para pavimentar o futuro”.

O julgamento que se inicia no TSE é o 1ª round da batalha pela defesa da democracia, cujo combate não se esgota nele, mas será precursor do modo como as instituições brasileiras atuarão para garantir a integridade da democracia e do processo democrático.

O Brasil tem antecedentes ruins de transigência e contemporização com os atentados à democracia ao longo de sua história. Por isso, talvez, os eventos antidemocráticos se repitam com tanta frequência. O TSE tem a oportunidade de iniciar a devida responsabilização para que isso não aconteça mais. Nunca mais.

¹ BORGES, Ademar; LEITE, Alaor. Entre o perdão e a vingança, a sanção. Estadão, Portal do Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.estadao.com.br/opiniao/entre-o-perdao-e-a-vinganca-a-sancao>. Acesso em: 16/06/2023.

*Pedro Barbosa Pereira Neto, procurador regional da República e membro da Diretoria do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático

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Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica