Maioridade penal: muito além da cláusula pétrea

Tiago de Toledo Rodrigues, Lélio Ferraz Siqueira Neto e Fernando Henrique de Moares Araújo
Sabidamente, a expressiva maioria a população apoia a redução da maioridade penal. Acreditamos que o espeque popular tem as seguintes premissas: que a insegurança, a violência e a impunidade atingiram níveis insuportáveis; que as ferramentas e mecanismos de prevenção e contenção destas mazelas são ineficientes; as falhas recaem sobretudo na lei, cujo defeito principal é a idade penal; e que a alteração etária-criminal contribuirá para a melhoria destes aspectos. Alguns destes axiomas estão corretos, outros são parcialmente verdadeiros e outros, ainda, são equivocados.
Inquestionavelmente, os níveis de insegurança, violência e impunidade no Brasil são atrozes. A indignação popular com tamanhas e inadmissíveis infrações a direitos humanos fundamentais é justa e esperada em uma sociedade que se ambiciona civilizada. São inadmissíveis, em um Estado democrático respeitador dos valores básicos do homem, as rotineiras e intoleráveis violações suportadas pelo povo brasileiro. Parece-nos igualmente certo que as ferramentas sociais de prevenção e contenção destes problemas, tal como empregadas, foram incapazes de garantir condições que assegurem uma saudável vida coletiva.
Embora os diagnósticos sejam indubitáveis, e a consequente exasperação pública seja justificada, a solução vislumbrada pela população – redução da maioridade penal –, não familiarizada com a matéria, não solucionará ou amenizará os problemas existentes e tampouco produzirá os efeitos que tanto se espera e necessita.
Os equívocos responsáveis por essas aflições transcendem o âmbito jurídico. Sabidamente, há graves falhas na rede básica de atendimento – educação, saúde etc. – que invariavelmente influenciam os índices de violência e segurança e contribuem ou prejudicam a paz social almejada.
Segundo estimativa do Mapa da Violência 2011, aproximadamente 95% dos homicídios ficam impunes – independentemente da idade do autor. Eventual alteração da idade penal não afetará o elevado índice de impunidade, pois a gigantesca maioria das infrações não resulta em qualquer punição, circunstância independente da idade do infrator.
Naquilo atinente às ferramentas legais, a defesa da redução da maioridade penal pressupõe, precipitadamente, que o regramento existente é defeituoso ou incapaz de alcançar resultados satisfatórios. Conforme estudo recente do Ministério Público de São Paulo, 70% dos adolescentes internados na Fundação Casa ali permanecem por no máximo nove dos 36 meses (ou seja, três anos) permitidos pela lei. A mesma pesquisa, que envolve somente a capital, aponta que 54,4% dos adolescentes que estão ou estiveram internados são reincidentes. O levantamento indica também que 61,1% dos atos infracionais foram cometidos com grave ameaça ou violência a pessoa – o que autoriza a internação (art. 122, I do ECA). Entretanto, menos de 42,1% deles resultou em internação definitiva.
Deste modo, forçoso deduzir que as medidas socioeducativas – parte importante do conjunto de ferramentas de prevenção e punição da violência, e de preservação da paz – estão sendo subutilizadas. Acrescente-se a superlotação de unidades, rebeliões, notícias de torturas e insalubridade das moradias, dentre outras inúmeras deficiências, e o produto será um desastroso – e, nalguns casos, até mesmo pernicioso – serviço socioeducativo executado.
Evidentemente este grave quadro envolve circunstâncias que desatendem os sistemas estabelecidos pelo ECA e pelo Sinase, que não foram executados do modo como planejados e, consequentemente, não foram postos à prova.
Logo, além do adolescente infrator há, no cenário atual, um Estado, no mínimo, omisso. É preciso cumprir as regras estabelecidas pela legislação vigente e aplicar um sistema socioeducativo – de meio fechado e aberto – com qualidade proporcional ao vultoso investimento feito pelos cofres públicos. Somente a partir do implemento fiel destas leis e da análise dos seus efeitos poder-se-á avaliar, com responsabilidade e profissionalismo, eventual necessidade de mudança no sistema vigente.
A conclusão é instintiva. É impossível e irresponsável definir o colapso ou o esgotamento de um sistema legislativo que sequer foi aplicado. E reduzir a maioridade penal, como sobredito, envolve esta enganosa premissa. Parece-nos que um projeto de lei que preveja tratamento mais austero – com ampliação e fixação do prazo mínimo de reavaliação da medida e do período máximo de internação – para os autores de atos infracionais gravíssimos (estupros, homicídios, latrocínios) é alternativa proporcional e justa para as hipóteses que demandam uma resposta mais severa do Estado, e que impede a generalização superficialista dos adolescentes em conflito com a lei.
Tiago de Toledo Rodrigues é promotor de Justiça e membro do Ministério Público Democrático (MPD). Lélio Ferraz Siqueira Neto e Fernando Henrique de Moares Araújo são promotores de Justiça.


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