Por Mário de Magalhães Papaterra Limongi

Em fins de 2019, o Congresso Nacional aprovou com modificações um projeto de lei chamado pomposamente pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, de pacote anticrime, com importantes modificações em matéria penal, processual penal e de execuções criminais.

O objetivo do pacote, no dizer do governo, era implementar medidas mais duras para enfrentar o aumento da violência e corrupção no país.

Passados mais de dois anos, parece evidente que não houve diminuição significativa, seja da violência, seja da corrupção.

E nem poderia ser diferente.

Qualquer pessoa minimamente informada sabe que a simples mudança legislativa, ainda que bem redigida com a intenção de aumentar penas e criar mais tipos penais, não tem impacto significativo para a diminuição da criminalidade.

Apesar de todo o protagonismo do ministro Sergio Moro, duas opções do Congresso Nacional demonstraram sua perda de força e prestígio: a não permissão de prisão de réu condenado em segunda instância e a criação do juiz de garantias, reivindicação de boa parte da advocacia criminal com considerável rejeição das entidades de classe ligadas ao Poder Judiciário e Ministério Público.

A primeira questão, como ficou assentado, depende de emenda constitucional e, ao que parece, saiu de pauta, o que não deixa de ser estranho diante da nova composição do Congresso Nacional com aumento expressivo da chamada “bancada da bala”, apoiadores de Jair Bolsonaro.

Já a segunda questão, após um inexplicável silêncio do Supremo Tribunal Federal, voltou à baila.

Como é sabido, está em curso julgamento, adiado pelo pedido de vista do ministro Dias Toffoli, em que se julgará a constitucionalidade do juízo de garantias – o julgamento ocorrerá a partir de agosto, já com a presença do novo ministro Cristiano Zanin.

Em verdade, este único tema – constitucionalidade ou não – deveria ser o objeto do julgamento, não cabendo qualquer discussão sobre a sua conveniência, questão já decidida por quem de direito: o legislador.

Cabe aqui um rápido histórico: o ministro Sergio Moro sempre foi contra a criação do juiz de garantias por entender que retardaria o andamento do processo criminal e, consequentemente, traria indesejada impunidade.

Não por acaso, Moro solicitou o veto presidencial dos artigos que alteraram o Código de Processo Penal para a criação do juiz de garantias.

O pedido de Moro, já enfraquecido por suas desavenças com Bolsonaro e seus filhos, não foi atendido.

Com a ausência de veto, o processo legislativo foi integralmente cumprido: o Executivo encaminhou projeto que sofreu mudanças nas casas legislativas, sendo, afinal, sancionado pelo Presidente da República sem nenhum veto relevante ao que foi decretado pelo Congresso Nacional.

Em suma: o juízo de garantias – goste-se ou não – foi criado por quem tem legitimidade para tanto: o Poder Legislativo.

Poderia ter sido vetado e não foi.

Com o devido respeito, não vejo fundamento para o debate que ocorre hoje na mais alta corte do país. Insisto: não está em discussão se a criação do juiz da garantias é ou não medida acertada, eis que a questão já foi apreciada pelo legislador que deliberou pela sua criação. O que está em discussão é a constitucionalidade da lei na forma em que foi promulgada.

Como é sabido, o que Sergio Moro não conseguiu no Poder Executivo, obteve no Judiciário.

Medida liminar concedida monocraticamente pelo ministro Luiz Fux impediu a efetivação do juiz da garantais.

A decisão monocrática perdurou por anos e só agora, quase três anos depois, vai ser apreciada pelo plenário.

Em 28 de junho, o ministro Fux apresentou seu voto e, como não poderia deixar de ser, foi contrário ao juízo da garantias.

De acordo com o voto, o “juiz de garantias não passa de um nome sedutor para uma cláusula que atentará contra a concretização da garantia constitucional da duração razoável dos processos”.

O argumento, com a devida vênia, não convence.

A uma porque, ao chamar de “um nome sedutor” questão apreciada pelo Poder Legislativo, o ministro invade seara alheia e faz indevida crítica a matéria debatida por quem tem competência para tanto.

A duas porque parece contraditório se invocar o princípio da duração razoável do processo, após a manutenção da liminar por quase três anos – notícias dão conta que o julgamento em plenário só ocorre em razão da pressão de outros ministros.

Finalmente, a observação ignora experiência bem-sucedida em São Paulo com a existência do DIPO que, basicamente, exerce as funções que seriam da competência do juiz de garantias sem que se possa dizer que acarrete retardamento no andamento dos processos.

Não se nega que alguns tribunais em alguns Estados terão dificuldades materiais e até orçamentárias para a introdução do juiz de garantias. Bem por isso, já se fala em estabelecer em implementação gradual da medida.

O que não parece razoável é a não adoção da lei, não por sua suposta inconstitucionalidade, mas por falta de estrutura.

O mesmo argumento pode ser utilizado para qualquer lei que acarrete criação de novas estruturas. Cabe, aqui, lembrar a previsão constitucional audaciosa do Sistema Único de Saúdes que, obviamente, em um primeiro momento, foi considerada impraticável.

Aceitar a ideia de falta de estrutura para justificar a não implementação de norma legitimamente criada transforma o Poder Judiciário em juiz da conveniência da legislação aprovada.

O que está em julgamento é se a norma é ou não constitucional.

Qualquer análise sobre sua viabilidade ou conveniência importa em indevida invasão na atividade legislativa.

Com a palavra, o plenário do Supremo Tribunal Federal.