Júlio Marcelo de Oliveira
10.08.2023 15:48

Na semana passada celebrou-se o aniversário de dez anos da Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013, conhecida como Lei Anticorrupção Empresarial ou simplesmente LAC. Diferentemente de outras normas, que ingressaram no ordenamento jurídico e foram sendo aplicadas como que gradualmente, à medida em que os atores jurídicos e sociais foram experimentando seus limites, descobrindo e construindo as melhores interpretações, essa lei entrou em vigor em pleno calor da operação Lava Jato, a mais importante e impactante operação anticorrupção de nossa história. Passados dez anos de sua promulgação, parece oportuno fazer um balanço de sua aplicação.

Essa lei foi aprovada como resposta a tratados internacionais por meio dos quais o Brasil se comprometeu a adotar uma legislação para combater a corrupção empresarial, incluída a transnacional. Proposta pelo Poder Executivo, a lei incorporou a agenda institucional da Controladoria-Geral da União de se tornar o órgão anticorrupção do país, atribuindo à CGU papel central na apuração de responsabilidades de empresas, aplicação de severas penalidades, acompanhamento da implementação de programas de integridade pelas empresas e a competência para celebrar acordos de leniência com empresas envolvidas com a prática de corrupção.

O acordo de leniência é um instrumento do combate à corrupção. Trata-se da possibilidade de o Estado transacionar com uma empresa infratora como meio de alavancar investigações, obter meios de prova e fazer cessar o funcionamento de esquemas de corrupção. Por seu intermédio, empresas infratoras oferecem informações e provas de que não dispõe o Estado em troca de redução, de abrandamento das penas a que estariam sujeitas pelos delitos que confessar. Se não houver ganhos para a investigação, não há motivo para haver acordo de leniência. Uma mera postura colaborativa de uma empresa investigada pode ser considerada como atenuante por ocasião de aplicação de uma sanção, mas não no alcance permitido em um acordo de leniência, que pode levar até mesmo à completa eliminação da sanção.

Essa última competência atribuída à CGU foi desde logo questionada pelo Ministério Público de Contas perante o Tribunal de Contas da União fundamentalmente por duas razões. A primeira, a ausência de independência da CGU para tratar de acordos com empreiteiras envolvidas no maior escândalo de corrupção do mundo, uma vez que o ministro titular da CGU é subordinado à Presidência da República e demissível a qualquer momento. A segunda, a conexão dos fatos possivelmente tratados nos acordos com as investigações então em curso conduzidas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal, titular exclusivo da ação penal, de modo que negociações no âmbito do Poder Executivo poderiam prejudicar o andamento de investigações penais e, mais, as empresas poderiam oferecer nos acordos, como informações supostamente novas, fatos já do conhecimento da investigação penal, mas inacessíveis à CGU em razão do sigilo da investigação. Em suma, o MP de Contas sustentou que, por sua própria natureza imbricada com a prática de crimes por pessoas físicas, a negociação de acordos de leniência somente poderia ser realizada pelo Ministério Público Federal ou, pelo menos, que contasse com sua participação e anuência, algo com que a CGU jamais concordou.

Com base diretamente nos próprios tratados internacionais e em suas competências constitucionais e legais, o MPF passou a negociar acordos de leniência com as empresas envolvidas na Lava Jato em paralelo com acordos de colaboração premiada das pessoas físicas envolvidas nos atos de corrupção – proprietários das empresas ou seus executivos. Essa competência foi validada pelo STF no MS 35.435. Naquele momento, restou claro para as empresas que o acordo com o MPF oferecia mais segurança jurídica, porque oferecia solução que atendia a um só tempo a necessidade das empresas de superarem os episódios que protagonizaram e, ainda, das pessoas físicas envolvidas de equacionarem sua situação penal. Ao todo, o MPF já celebrou 29 acordos de leniência, 13 deles no âmbito da operação Lava Jato.

Nessa época, a CGU abriu formalmente negociações com praticamente todas as empresas envolvidas na Lava Jato, mas sem avanços concretos. Com a abertura formal das negociações, a CGU emitia uma inusitada certidão de “negociações em curso” para que as empresas apresentassem a agentes de financiamento de seus projetos, especialmente bancos públicos federais. O governo adotava na época o discurso de que era preciso salvar as empresas, contrariando os tratados internacionais que serviram de motivação para a adoção da LAC pelo Brasil, que expressamente proíbem que se aleguem questões de conveniência da economia ou sobrevivência econômica das empresas para justificar ausência de punição a elas. Com o passar do tempo, a CGU passou a celebrar acordos-espelho com as empresas, replicando neles as mesmas condições negociadas pelo MPF, numa tentativa de afirmar sua competência equivocadamente prevista na LAC.

Em face dessa discussão, o senador Ricardo Ferraço propôs o projeto de lei 105/2015 com o objetivo de harmonizar a competência da CGU com a necessidade de preservar as investigações conduzidas pelo Ministério Público. O projeto continha um único artigo, estabelecendo a necessidade de homologação pelo MP para a celebração do acordo pelo órgão de controle interno. Esse projeto, contudo, foi completamente desvirtuado em sua tramitação no Senado, não mais exigindo homologação pelo MPF e permitindo que os acordos de leniência celebrados pela CGU passassem a repercutir sobre processos em curso no Tribunal de Contas da União, afetando as competências constitucionais do órgão de controle externo.

Ao chegar na Câmara dos Deputados em dezembro de 2015, onde se planejava aprová-lo em regime de urgência, a firme reação do MP de Contas, dos auditores do TCU, do corpo de ministros representado pelo ministro Benjamin Zymler, do Instituto Não Aceito Corrupção, presentes às audiências públicas convocadas para debater o projeto, logrou obstar sua aprovação.

Sintomaticamente, após a frustração da aprovação relâmpago que se pretendia, o governo federal lançou mão da Medida Provisória 703, de 18 de dezembro de 2015, que, posteriormente, foi referida pela empresa Odebrecht como uma espécie de encomenda sua para dar a ela segurança jurídica para negociar com a CGU. Após representação do MP de Contas ao TCU e oferecimento de ADI contra a MP 703/2015, que suspenderam a aplicação da medida provisória, a empresa Odebrecht, maior das empreiteiras envolvidas na Lava Jato, decidiu negociar e celebrar acordo de leniência com o MPF, conforme relatou à época o próprio Emílio Odebrecht.

Em maio de 2016, após a realização de amplo debate em seminário promovido pela UERJ, com a participação de parlamentares, magistrados, procuradores, advogados e professores, um grupo de parlamentares, capitaneados pelos deputados Raul Jungmann, Rubens Bueno e Pauderney Avelino, apresentou um projeto de lei alternativo a esse engendrado no Senado, o PL 5208/2016, corrigindo os graves equívocos de desenho institucional da LAC. Infelizmente, esse projeto nunca foi aprovado e a LAC continua com os mesmos problemas desde sua origem.

Pior, em agosto de 2020, sob a esdrúxula liderança do STF, então presidido pelo ministro Dias Toffoli, foi celebrado um acordo de cooperação técnica entre CGU, AGU, STF, TCU e Ministério da Justiça e Segurança Pública com vistas a supostamente harmonizar a atuação de todos os órgãos em torno desse tema. Diz-se esdrúxula porque o STF detém competência jurisdicional apenas. Não lhe compete a tutela extrajudicial de órgãos do Poder Executivo bem como de órgãos autônomos como o TCU. O Ministério Público Federal, embora conste como um dos órgãos que seriam signatários do acordo, não o assinou e dele não faz parte. Nesse acordo, consta absurdo dispositivo que veda a seus signatários atuar para alterar no Congresso Nacional a LAC em favor de um desenho institucional mais efetivo.

Vê-se, pois, que essa lei, que foi extremamente importante para o avanço e profundidade da operação Lava Jato, teve existência atribulada e disputada desde sua entrada em vigor.

Nessa atual quadra de desmonte da Lava Jato, de anulação de processos, de dicção pelo STF do oposto do que ele havia dito antes, um novo capítulo se abre em torno do tema da leniência. Recentemente, três partidos políticos (PSOL, PC do B e Solidariedade), representados por advogados que atuam e atuaram em diversos momentos contra a Lava Jato, ofereceram nova ação para questionar os acordos de leniência celebrados pelo MPF (ADPF 1051). O objetivo é declarar a incompetência do MPF para celebrar tais acordos e centralizá-los na CGU, invalidando todos os compromissos assumidos pelas empresas de ressarcimento aos cofres públicos e da Petrobrás dos bilhões que elas mesmas confessaram ter ganho de maneira ilícita.

O passado recente tem mostrado que não é um problema para o STF atuar como metamorfose ambulante, como diria Raul Seixas e novamente dizer o oposto do que disse antes. Será mais um golpe no já debilitado combate à corrupção retirar do MPF essa competência que ontologicamente lhe cabe, tanto pela própria natureza dos fatos envolvidos, que sempre configuram também ilícito penal, como pela finalidade do instituto, que é combater a corrupção, sem falar em todos os dispositivos do ordenamento jurídico utilizados como fundamento pelo MPF e reconhecidos pelo próprio STF ao julgar o MS 35.435.

Apesar de toda a narrativa de demonização da Lava Jato e da vitória acachapante do garantismo da impunidade neste país, que é um paraíso criminal para os delinquentes de colarinho branco, a maior parte da sociedade brasileira, que ainda anseia por integridade na política, nos negócios, na vida em geral, considera positiva essa e outras operações de combate à corrupção, ainda apontada como um dos principais problemas brasileiros. Em pesquisa realizada pela Quaest para a Transparência Internacional sobre a LAC e divulgada no último dia 1º de agosto, 83 % dos empresários entrevistados disseram acreditar que as operações policiais anticorrupção ajudaram a reduzir a sensação de impunidade no país, ao passo que 17% consideram que elas não tiveram esse impacto. Dentre elas, a Lava Jato é avaliada como positiva para 64%, regular para 25% e negativa para apenas 11%.

De fato, com a Lava Jato, pela primeira vez na história do Brasil, políticos e empresários poderosos foram processados, condenados e punidos por crimes de corrupção. Ante dela, todas as operações eram anuladas pelos motivos mais banais e inusitados, como aconteceu com a Castelo de Areia e tantas outras antes dela e como voltou a acontecer novamente. Basta a um ministro do STF afirmar em um despacho monocrático que não considera haver justa causa para a ação penal, ou mesmo para a investigação, que todo o trabalho policial, do Ministério Público e das demais instâncias do Judiciário é jogado no lixo.

A Lei Anticorrupção cumpre uma função importante e é necessária para lidar com a corrupção empresarial e fomentar integridade, mas a atribuição dos acordos de leniência ao órgão de controle interno do Poder Executivo em vez de ao órgão responsável pela persecução penal constitui grave equívoco de desenho institucional que ainda trará muitos prejuízos para sociedade brasileira enquanto não for corrigido. Oxalá o STF não retire do Ministério Público a possibilidade de negociar acordos de leniência e o Congresso Nacional revise a LAC para aprimorá-la, harmonizando-a com as competências constitucionais do Ministério Público e dos tribunais de contas, como previsto no PL 5208/2016.