Airton Florentino de Barros*
22 de setembro de 2022 | 05h00

Sem qualquer dúvida tem natureza comercial ou mercantil o contrato de locação ou arrendamento de espaços internos em shopping e foodpark e, assim, caracteriza locação qualificada, a exigir maior proteção do locatário, especialmente na defesa da manutenção da empresa arrendatária no interesse social, tanto que a antiga Lei de Luvas e a vigente Lei de Locações, entre outras garantias, preveem para a hipótese até o direito de renovação compulsória de locação.

A propósito, a Lei do Arrendamento Mercantil Financeiro chega a prever que os aluguéis pagos devem ter a natureza de amortização do preço do bem arrendado, de tal modo a admitir a opção de compra do bem pelo arrendatário, mediante o pagamento do saldo do preço na oportunidade do pagamento da última parcela antes do vencimento do contrato de arrendamento.

Isso é suficiente para demonstrar a relevância e a excepcionalidade do contrato de locação ou arrendamento comercial, que não pode ser considerado, assim, como um contrato comum de locação que, aliás, por si só, já conta com considerável proteção jurídica. Tanto que, no contrato de locação por prazo determinado, não pode o locador, antes do vencimento, reaver a coisa alugada senão ressarcindo ao locatário as perdas e danos, caso em que é admitida a retenção de benfeitorias (Cód. Civil, art.571 e parágrafo), sem contar a possibilidade de questionamento da venda do shopping ou parque sem observância do direito de preferência de compra dos arrendatários.

Por isso, não cabe na hipótese a rescisão unilateral imotivada do arrendante, muito menos com o exíguo prazo, como frequentemente prevê esse tipo de contrato, devendo prevalecer, para a desocupação do espaço interno pelo arrendatário, o tempo necessário para o retorno integral do capital por ele investido, com o rendimento de praxe (Cód. Civil, art.473 e parágrafo), a menos que o arrendante resolva desde logo ressarcir o arrendatário pelo valor total do investimento realizado, incluindo o dano decorrente da perda de chance.

Não se pode esquecer que, na generalidade dos casos, esse contrato de locação é redigido pelo arrendante, sem possibilidade de qualquer modificação pelo arrendatário, cuidando-se, então, de contrato de adesão. Portanto, cláusula inserida no contrato de adesão admitindo autoridade ao arrendante para, depois de elevados investimentos realizados pelo arrendatário, decretar a rescisão unilateral imotivada, concedendo-lhe exíguo prazo para retirar-se compulsoriamente do estabelecimento arrendado, embora com três ou quatro anos pela frente até o vencimento do contrato, equivaleria à renúncia antecipada do arrendatário a direito resultante da natureza do seu negócio, cláusula que nem seria, por isso, válida (Cód. Civil, art.424). Em se tratando de contrato de adesão, aliás, eventual conflito entre normas contratuais deve ser interpretado em favor do aderente (Cód. Civil, arts.113, §1º, IV e 423).

Sabe-se, pois, que ordinariamente o prazo previsto para esse contrato de locação é definido pelo tempo mínimo necessário para o retorno do capital, mais o lucro aproximado de 30% sobre o capital investido, como de praxe.

Daí, a retirada do arrendatário só se efetivará de forma legítima após o vencimento do prazo contratual, ainda mais se se considerar a função social do contrato (Cód. Civil, art.421), que recomenda a manutenção da empresa arrendatária até em razão dos inúmeros empregos diretos e indiretos que produz.

Não importa, assim, a literalidade de eventuais cláusulas contratuais abusivas e, portanto, nulas, até porque o que mais vale na relação contratual é a intenção manifesta do contratado de boa-fé (Cód. Civil, arts.112), ainda mais quando se cuida de contrato de adesão, sobretudo porque a interpretação do negócio jurídico deve ser feita de modo a considerar, além da boa-fé, o comportamento das partes, os costumes e a prática do mercado, o maior benefício à parte que não teve oportunidade de redigir qualquer das cláusulas contratuais e a presunção da razoável negociação sobre a questão discutida (Cód. Civil, art.113).

Certos contratos de locação dessa natureza preveem indevidamente a possibilidade de o arrendante alterar a seu talante o local dos estabelecimentos internos, sob o pretexto de atrair com esse procedimento maior clientela para todo o shopping ou parque.

Trata-se, na verdade, de um péssimo e abusivo “copia-e-cola” da chamada cláusula de tenant mix adotada por shoppings centers que, todavia, não passa de um planejamento prévio de planta de distribuição dos espaços do shopping center por diversos ramos de estabelecimentos, elaborada no início do empreendimento a partir de pesquisa de mercado com expectativa de maior atração de consumidores.

Cuida-se, de fato, de atribuição exclusiva dos empreendedores e da administração do shopping, desde que traduzida em planejamento prévio, nunca podendo invadir a esfera de autonomia das empresas locatárias ou arrendatárias, ou seja, depois de arrendado o espaço interno, nele o arrendante não pode mais mexer enquanto durar o prazo contratual, a não ser por disposição bilateral.

Isso mesmo. Depois de formada essa espécie de mosaico no quadro de distribuição variegada de espaços internos, com a planejada ocupação conforme o ramo de exploração comercial, passa-se à fase de contratação dos arrendatários ou locatários interessados. Só pode a administradora, a partir daí, quando muito, alterar espaços que venham a ser eventualmente desocupados. Essa, aliás, é a praxe geral desse tipo de empreendimento (Cód. Civil, art.113, §1º, II).

Deve-se entender nula a cláusula que prevê, nesse contrato, tal alteração unilateral, porque ilegal, na medida em que, com o objetivo de fraudar lei imperativa (Cód. Civil, art. 166, VI), submete o arrendatário, em contrato de adesão, ao arbítrio exclusivo do arrendante (Cód. Civil, art.122).

Pelas razões já expostas, caso disponha o shopping ou parque de regulamento interno, é necessário compreender que tais normas internas só terão validade se comprovadamente postas à disposição do arrendatário antes ou na oportunidade da contratação, dependendo eventuais posteriores alterações da aprovação que conte com a participação da coletividade de arrendatários.

*Airton Florentino de Barros, advogado, professor de Direito Empresarial, fundador e ex-presidente do Ministério Público Democrático

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