ROBERTO LIVIANU 08 AGOSTO 2023 4min de leitura

A Polícia Federal, quatro anos passados das revelações bombásticas, acaba de prender, em Araraquara, Walter Delgatti Neto, o famoso hacker da Vaza Jato. Registre-se que a Deputada Federal Carla Zambelli (PL-SP) é alvo de busca e apreensão no mesmo processo.

Cumprem-se determinações assinadas por Alexandre de Moraes. Investiga-se a atuação em parceria entre Zambelli e Delgatti na invasão aos sistemas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e na inserção de documentos e alvarás de soltura falsos no BNMP (Banco Nacional de Mandados de Prisão) https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/08/02/pf-operacao-invasao-aos-sistemas-judiciario.htm

The Intercept Brasil divulgou diálogos travados pelo Telegram, principalmente entre o então Procurador da República Deltan Dallagnol e o Juiz Federal Sérgio Moro. Informações que o hacker Walter Delgatti Neto obteve criminosamente e que, como se sabe, colocaram naquela altura a república de ponta cabeça.

Antes disto, Moro havia condenado o presidente Lula, tornando-o “ficha suja”, o que o tirou da disputa presidencial de 2018, onde liderava as intenções de voto. O beneficiário da decisão, Bolsonaro, venceu aquelas eleições e convidou o juiz a assumir seu Ministério da Justiça e Segurança Pública. Para isto ele teve de se exonerar da magistratura, onde acumulava 22 anos de carreira.

Surpreendeu muitos quando aceitou o convite, gerando danos devastadores e irreparáveis para a luta anticorrupção no Brasil, para deixar o Governo um ano após, acusando o presidente Bolsonaro de corrupção, mas o apoiando na candidatura à reeleição em 2022. Hoje Moro é Senador, sob grave risco de cassação do mandato, em situação semelhante à da ex-Senadora Selma Arruda, que também foi magistrada.

Deltan, por sua vez, exonerou-se do MPF e foi eleito o Deputado Federal mais votado do Paraná, sendo cassado pelo TSE, em julgamento de juridicidade extremamente discutida, já que não possuía efetivamente processos administrativos contra si pendentes quando deixou a carreira, sendo o fundamento da cassação a mera perspectiva de reclamações se transformarem no futuro em processos administrativos, fundamento este não previsto expressamente na lei.

Como é de conhecimento público, segundo narra Delgatti, a parlamentar Zambelli teria determinado que ele Delgatti inserisse em sistema de dados público falso mandado de prisão, supostamente subscrito por Alexandre de Moraes em desfavor de si mesmo, além de postular a invasão do aparelho de telefonia celular do magistrado.

Moraes determinou por isto que a PF recolha armas, computadores, tablets e o passaporte de Carla Zambelli em todos os endereços relacionados à deputada. Na decisão, o ministro do STF pede averiguar se há cômodos secretos nos locais. Os fatos investigados configuram os crimes de invasão de dispositivo informático e falsidade ideológica.

Apurou-se que Delgatti se encontrou com o então presidente da República Bolsonaro, com a participação de núcleo de pessoas ligadas ao bolsonarismo e o tema do diálogo girou em torno do sistema de urnas eletrônicas, objeto de intensa desmoralização por Bolsonaro, o que gerou erosão democrática e descrédito do mecanismo que o país utiliza há décadas e através do qual o próprio Bolsonaro conquistou seis mandatos de Deputado Federal sem nunca questionar sua lisura.

Neste cenário, não se pode considerar surpresa o resultado ruim para o Brasil no relatório anual V-Dem, sobre a democracia em mais de 180 países, que avaliou a independência entre os poderes, a integridade do sistema eleitoral, entre outros aspectos, para o qual evidentemente Bolsonaro contribuiu.

Elaborado por estudiosos da Universidade de Gotemburgo, pela primeira vez desde 1995 o estudo mostra o número de ditaduras ultrapassar globalmente o número de democracias plenas. E foi o quarto ano seguido em que o relatório destacou piora da democracia no Brasil. Somos “democracia falha”, com riscos sérios de nos transformarmos numa autocracia.

Chama a atenção a argumentação justificativa declarada por Zambelli, diante da incriminação de Walter Delgatti. Afirma que se trataria de teste para verificar se o sistema seria eficiente. Ou seja, assim sendo todos os criminosos poderão alegar que praticaram seus crimes para testar o sistema de justiça, a eficácia do Ministério Público, e assim por diante. Se não fosse pilhada no crime ficaria impune, ao ser surpreendida, alega que era teste de eficácia, como fez Paulo Maluf alguns anos atrás ao fazer falsa comunicação de crime à Polícia Militar de São Paulo. Surreal.

Tais fatos são extremamente graves e evidenciam desapreço pelos valores democráticos, chamando a atenção o grau de ousadia das condutas, talvez explicável pela lamentável crença na impunidade. A única resposta possível é o exemplar funcionamento do aparato do sistema de justiça, apuração das responsabilidades e aplicação das sanções cabíveis, mediante o devido processo legal, garantida a ampla defesa, para que sejam respeitados os princípios republicanos e valores democráticos.

*Roberto Livianu, procurador de Justiça, vice-presidente do MPD, doutor em Direito pela USP, idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas e colunista do Estadão

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Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica