Ricardo Prado Pires de Campos*
06 de outubro de 2022 | 05h00
As eleições são um momento importante para ouvir a sociedade, não apenas para saber quem serão os novos governantes, mas também, para saber quais são os problemas que a afligem e o que pretende.
Os candidatos fazem seus discursos e a sociedade responde pelo voto. Assim, combinando os discursos e a postura dos candidatos é possível inferir quais são os valores, as preocupações, e as soluções que cada camada da sociedade vislumbra.
O mapa dos resultados traz a primeira grande informação. Primeiro, não houve um predomínio completo de nenhum dos postulantes. O país está dividido, e a julgar pelo mapa é quase meio a meio. A predominância do atual presidente candidato à reeleição começa no Sul do país, passa pelo Sudeste, vai ao Centro Oeste e até consegue alguns rincões no Norte. A predominância do ex-presidente é significativa no Nordeste, atingiu os maiores estados da região Norte, e ainda pinta (em vermelho) várias áreas incrustadas no Sul, Sudeste e até no Centro-Oeste.
Como se sabe, das campanhas eleitorais, o ex-presidente Lula e seu partido dos trabalhadores sempre teve uma pauta de defesa dos desfavorecidos da sorte e das chamadas minorias. A campanha do Fome Zero, a política de aumentos reais para o salário-mínimo, auxílios assistenciais para os mais pobres sempre estiveram na pauta do partido. Também, a luta por moradia e terras para a agricultura familiar. Não foi por acaso que o tema da fome voltou aos debates eleitorais no país.
O atual presidente possui outras bandeiras. Algumas das mais visíveis são a pauta de costumes conservadora, o liberalismo na economia com a promessa de privatizações, a defesa do agronegócio e a pauta armamentista.
Para o ex-presidente, o Estado deve proteger e ajudar a população, com ênfase nos mais pobres; para o atual presidente, basta que o Estado não atrapalhe os negócios que as pessoas sabem e podem resolver suas vidas, ou seja, um discurso que soa como violino para os agentes do mercado financeiro.
O Nordeste é onde se concentra a maior parte da população com problema alimentar no país. A região possui riqueza, mas concentrada em poucas famílias. Algumas das grandes fortunas brasileiras estão lá. A faixa litorânea e grandes cidades do sertão registram a presença de profissionais liberais, prestadores de serviços, comerciantes e, portanto, possuem, também, classe média, mas não na mesma dimensão que as demais. A industrialização e as águas chegaram recentemente e a região está em crescimento. Todavia, a população carente ainda é gigantesca. O país tem apresentado demora para integrar essa parcela da população no sistema produtivo mais avançado e na distribuição de renda. Falta infraestrutura e investimentos públicos. Nessa região, a presença mais forte do Estado, ainda, se faz necessária. Daí, a propensão dos nordestinos votarem num candidato que prometa maior presença do Estado na economia. Lá, isso se faz imprescindível.
Obviamente, isso não ocorre apenas no Nordeste, mas em todas as microrregiões onde o desenvolvimento ainda não atingiu um grau que permita a iniciativa privada seguir por si só. A infraestrutura de um país é construída, em grande parte, pelo seu Estado. A iniciativa privada pode colaborar e muito, mas o planejamento e até parte considerável dos recursos e da execução, invariavelmente, vêm do Estado. Rodovias, ferrovias, portos e aeroportos, escolas e hospitais, muitos foram planejados e erguidos pela ação estatal; ou contam com o auxílio do Estado, vale exemplificar com o caso do SUS repassando recursos dos impostos para hospitais particulares atenderem a população carente.
Na região Sul, um dos redutos eleitorais do atual presidente, a população local possui uma renda melhor. O número de pobres é pequeno; de forma que, nessa região, o discurso contra a fome não encontra muitos eleitores. Para quem já está com a vida financeira resolvida ou bem-organizada, o discurso contra os impostos, contra a presença do Estado na economia, e até as privatizações, possuem maior ressonância.
Não é por acaso que cada região, com sua realidade, leva a propostas de solução diferentes, e, portanto, a candidatos com perfis e discursos diversos.
A região Centro-Oeste, atualmente, vive um boom de desenvolvimento provocado pelas exportações do agronegócio. É natural que um candidato pró agro seja bem recebido e um candidato pró MST seja repelido com veemência. Todavia, há municípios com pequenos agricultores sem terras, o que ainda gera demanda por distribuição de títulos agrários. Ocorre que diante da gigantesca urbanização que o país experimentou nas últimas décadas, o contingente de demanda no campo diminuiu assombrosamente. A população, hoje, está nos centros urbanos. As pessoas perceberam como é bom morar nas cidades e se mudaram. Ninguém quer ficar no campo.
A geração mais jovem vive conectada, está nas redes sociais. Suas demandas são de uma população urbana. Não é por outra razão que o líder do Movimento dos Sem-Teto foi eleito em São Paulo com votação gigantesca. A demanda nas cidades não é por terra para plantio, mas por moradia.
Na região Sudeste, há muita riqueza, classe média significativa, e pobreza em menor número. A região não é tão homogênea como o Sul do país, apresenta maior desigualdade, mas a população que possui boas condições de vida já é maioria. Claro, a situação é desigual nas microrregiões dos estados; mas São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo possuem boa infraestrutura e bons serviços. As capitais são populosas, apresentam alguns grotões de pobreza, mas de forma geral, concentram grande parte da riqueza.
Viver nas grandes capitais, de Norte a Sul, é uma experiência deliciosa. Custa mais caro, é verdade. Nos pequenos municípios, as despesas são menores, mas a infraestrutura não é tão boa e faltam oportunidades, inclusive para diversão. Não é à toa que as pessoas preferem viver nas capitais. Nas grandes aglomerações urbanas está a melhor infraestrutura e os melhores serviços. Quem dispõe de recursos para viver numa grande cidade possui outras demandas, mas não está na linha da miséria, nem será conquistado pelo discurso contra a fome. Já, a questão da segurança pública está presente na vida das metrópoles. E, também, os impostos e a inflação.
Aqui cabe uma pequena digressão para falar sobre a mudança do perfil religioso do brasileiro, e seu componente na economia e nas eleições. A Igreja Católica possui um Santo muito conhecido, São Francisco de Assis, que criou a ordem dos franciscanos, e que teria repudiado a fortuna paterna para viver a vida na pobreza. Ou seja, enquanto os católicos ouviam que a pobreza era virtude, e os ricos teriam dificuldades para entrar no Reino de Deus; as Igrejas Evangélicas têm uma postura muito diferente frente a riqueza. Enfatizam o direito das pessoas serem ricas, isso seria um sinal dos Céus de que a pessoa foi distinguida por Deus, e, portanto, pode estar dentre os escolhidos. Ou seja, na simplificação que chega até a população menos letrada, na Igreja Católica, o reino de Deus é para os pobres; na Evangélica, se quer entrar no Paraíso, primeiro, fique rico.
Ora, como se sabe, as Igrejas Evangélicas têm crescido muito mais em número de fiéis. As pessoas estão escolhendo ficar ricas, em vez de permanecer na pobreza.
Para as pessoas com boa renda, o Estado não precisa intervir na economia, basta que reduza a tributação e controle a inflação. Já os mais pobres, precisam que o Estado forneça auxílio. Não é à toa que o Bolsa Família virou Auxílio Brasil e se encontre no meio dos debates políticos. A maior ou menor dependência dos eleitores desses benefícios, obviamente, impactam na votação de cada um dos candidatos.
Parece, todavia, que a população do país caminha para sua autossuficiência e, portanto, poderá prescindir, daqui algum tempo, desse tipo de ajuda. Quando tivermos um índice de desemprego mais baixo e renda mais alta, os auxílios ficarão apenas para aqueles que estão impossibilitados de trabalhar.
O resultado do primeiro turno das eleições demonstra que grande parte da população brasileira enriqueceu nas últimas décadas; e embora, ainda, haja muita gente carente, esse grupo está em processo de diminuição. A pandemia causou um retrocesso, é verdade. E a situação nunca é a ideal, as pessoas sempre querem mais, mas o Brasil já é uma das maiores economias do Globo. Já fomos subdesenvolvidos, em desenvolvimento, e agora, estamos buscando a entrada na OCDE, o grupo dos países mais ricos do Mundo. Essa mudança está se refletindo no perfil dos eleitores e em suas escolhas.
Com certeza, não é somente a economia que está em jogo nessas eleições. Saúde, educação, segurança pública e corrupção estão presentes na pauta dos debates, mas é inegável que, desta feita, as questões econômicas ganharam prioridade.
A própria questão da Amazônia e das terras indígenas, cobiçadas por grileiros, madeireiros e garimpeiros não deixa de ser um embate econômico visível. Não se trata apenas de questão ambiental, mas de interesse econômico profundo sobre propriedade alheia. De forma que a defesa da Amazônia divide opiniões. Os principais candidatos alternaram a preferência nos diversos estados da Região Norte. Onde o garimpo domina, o atual presidente leva vantagem; onde a preservação da floresta possui valor é reduto do ex-presidente.
Em nenhuma região, no entanto, há unanimidade. Entre grupos de interesse, isso até pode ocorrer; mas na distribuição geográfica a questão é mais complexa. Há maiorias, em alguns redutos significativa, para um ou outro lado, o que invariavelmente leva os eleitores da localidade a achar que seu candidato já ganhou e que isso é inquestionável, mas na complexidade de um país gigante em dimensões, e com interesses e realidades tão distintas, somente as urnas podem revelar, realmente, o que pensam os brasileiros e brasileiras.
É óbvio, também, que há outros valores importantíssimos na decisão do voto como preservação ambiental, democracia, respeito à dignidade humana, respeito à diversidade e aos povos indígenas, e outras mais, questões que precisam ser consideradas.
Qual o Brasil que iremos construir no próximo quadriênio? Parte significativa foi decidida no primeiro turno, outra parte importante decidiremos no final do mês.
*Ricardo Prado Pires de Campos, professor de Direito Processual Penal, procurador de Justiça aposentado e ex-presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático
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