Celeste Leite dos Santos*
29 de setembro de 2022 | 05h00

Vivemos em um momento de euforia cidadã: ideologias são apresentadas em todos os setores da sociedade para legitimar a festa da democracia que sairá consagrada com os resultados das urnas eleitorais que se avizinham.

Candidatos e candidatos apresentam bandeiras com maior ou menor rigor punitivo – de um lado há os que sustentam o incremento no número de crimes e suas penas. Em sentido diverso, temos os que denunciam os riscos do encarceramento em massa. Isso em uma simplificação inerente aos tempos atuais, já que poucos são os que ousam ir além do título da notícia apresentada.

Na linha do propalado populismo penal, o Poder Legislativo aprovou recentemente o crime de violência institucional. Longe de oferecer resposta penal capaz de enfrentar o problema da violência em nossa sociedade, foi efetuada simples transferência deste para o Poder Judiciário e seus atores.

Cito o caso do menino Henry Borel pela repercussão nas mídias nacionais e, pela notória violência enfrentada diariamente pelo seu pai e familiares, vítimas indiretas do delito perpetrado. A dor e o trauma pela perda do ente querido não encontraram nenhum conforto nas fórmulas apresentadas pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

O Poder Executivo continua sem o dever de desenvolver políticas públicas de atenção e acolhimento as vítimas de crimes, desastres naturais e calamidades públicas. Ainda que a Lei Henry Borel trate de uma tipologia específica de vítima, qual seja, crianças e adolescentes em contexto de violência doméstica e familiar, pouco ou nada se avançou no acolhimento das vítimas indiretas, coletivas e das vítimas diretas de crimes, desastres naturais e calamidades públicas. Já o Poder Legislativo, continua omisso em legislar sobre os direitos universais das vítimas, independente da origem do fato vitimizante, o que contraria a tendência mundial, eis que o Estatuto da Vítima é realidade em Portugal, Espanha, México, Argentina, dentre outros. A ausência de unidade no tratamento da questão da vítima, impede o avanço civilizatório e a cobrança por políticas públicas e sociais de atenção, acolhimento e apoio. O Poder Judiciário, por sua vez, deixa de exigir em seus concursos públicos conhecimentos específicos em vitimologia. A  máquina judiciária mantém suas engrenagens funcionando, alheia a qualquer emoção e sentimentos humanos – prova disso é que vítimas muitas vezes tomam conhecimento pela imprensa da revogação de custódias preventivas ou definitivas sem que possam contribuir com o processo de tomada de decisão. Ao contrário dos poderes quase ilimitados dos acusados, a atuação da vítima no processo penal é rigorosamente controlada e limitada, corroborando o seu processo de instrumentalização para manutenção do poder estabelecido.

Cumpre mencionar ainda que a ausência de resposta a violência em nossa sociedade não se resume na culpabilização dos entes políticos. A própria sociedade é alheia a essa discussão quando adere a pautas populistas sem qualquer reflexão cidadã ou empática sobre o problema das vítimas. A tragédia em Capitólio, as enchentes na Bahia e a calamidade pública em Petrópolis parecem ter sido adequadamente solucionados com a doação de cestas básicas, oferecimento de abrigos provisórios ou campanhas de arrecadação. Passado o clamor da notícia pouco ou nada se sabe sobre o desenvolvimento de políticas de contingenciamento e gestão de crises, já que nenhuma cobrança efetiva da mídia ou cidadãos é feita em torno desse problema estrutural.

Ser cidadão ou cidadã significa basicamente participar ativamente para a implementação dos direitos humanos e garantia dos valores consagrados em nossa Constituição Cidadã, tais como igualdade, liberdade e justiça social. A sociedade do bem-estar social é aquela que demanda respostas a problemas específicos de nossa sociedade. É nesse caminhar restaurativo que se encontram soluções resilientes e duradouras para os problemas apresentados.

Todo esse esforço discursivo pode ser resumido a uma única questão – mas afinal o que queremos? Afinal, após as eleições teremos a Copa do Mundo e depois já seremos solapados pelas festividades de fim de ano. Para que se incomodar?

Passados dois anos do início da pandemia mundial, caro leitor, se problemas como a insegurança alimentar de cerca de três milhões de pessoas, o assédio moral no ambiente corporativo e público, a vergonhosa posição do Brasil em termos de equidade de gênero, o racismo estrutural, a liderança mundial no número de homicídios de pessoas LGBTQIAP+, o tráfico de pessoas, as crianças e adolescentes vítimas de maus tratos, a ausência de políticas educacionais e sociais integradoras que permitam o respeito ao direito ao desenvolvimento das gerações futuras não lhe dizem respeito, o que podemos esperar dos poderes constituídos?

*Celeste Leite dos Santos, promotora de Justiça gestora do Projeto Avarc, presidente do Instituto Próvítima, doutora pela USP, mestre pela PUC/SP, idealizadora do Estatuto da Vítima (PL n. 3.890/2020) e membro do Movimento do Ministério Público Democrático

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