Bianca Stella Azevedo Barroso*
14 de outubro de 2022 | 09h00

O crescimento populacional, principalmente a concentração das pessoas em cidades mais estruturadas, como demonstra a pesquisa do WRI BRASIL[1] concluindo que mais da metade da população do mundo reside em áreas urbanas, impôs a vida em uma sociedade de grandes massas, reverberando na necessidade de aprimoramento de serviços, públicos e privados, para atender as necessidades das pessoas buscando e o bem-estar social e a convivência harmônica.

Entretanto, a necessidade de melhoramentos dos serviços não é de hoje. Em 1809 na Suécia se construiu o conceito e a finalidade do “Ombudsman” – representante do povo, que teria a função de “ouvir” a população sobre queixas relacionadas ao serviço público e assim atuar pelo interesse do povo junto ao parlamento. Seria assim, um grande, intermediador a sociedade e o estado constituído.

Nesta tônica, no Brasil colonizado no século XVI existiu o título de Ouvidor Geral, sendo o considerado o “Ouvido do rei”, que veio a ser extinto com a independência brasileira em 1822, voltando a surgir no período de redemocratização quando se retomou o processo de participação popular nas gestões governamentais visando, assim, aproximar a população dos serviços públicos, até como forma de mantê-los.[2]

Com efeito a Constituição Federal de 1988 garantiu a participação dos usuários dos serviços na Administração Pública, impondo a regulamentação da forma de atendimento ao público, reclamações, acesso a informações sobre atos governamentais, representação contra negligência e abuso no exercício do cargo, emprego ou função na administração pública.

No âmbito do Ministério Público, a Carta Magna estabeleceu em seu art.130-A, 5º, a criação das ouvidorias como órgãos competentes para a recepção de reclamações e denúncias realizadas por qualquer interessado contra membros ou órgãos da instituição, bem como contra os serviços auxiliares, podendo representar diretamente ao Conselho Nacional do Ministério Público.

Por sua vez, o Conselho Nacional do Ministério Público previu em seu Regimento Interno, trazido pela Resolução nº 92/93, a Ouvidoria Nacional, como órgão de “comunicação direta e simplificada” entre a sociedade e o referido Conselho, cujo objetivo principal é o aperfeiçoamento das atividades realizadas pelo Ministério Público e o esclarecimento aos cidadãos das suas atividades.

Vale destacar que o Regimento Interno destaca a competência da Ouvidoria Nacional na promoção da integração das ouvidorias das unidades do Ministério Público com vistas a consolidar as principais demandas e informações colhidas para viabilizar formulação de estratégias nacionais que se relacionem ao atendimento ao público e ao aperfeiçoamento da própria instituição.[3]

Neste ponto, convém retornar ao comando constitucional quando determina que lei discipline as “formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta”, estabelece a garantida da participação pública no regime de governança estatal

Sobre a participação pública, podemos compreendê-la a partir da pesquisa de Graça (2018)[4] quando analisou o orçamento público no Município de Lisboa, que a tratou como um instrumento posto à disposição das instituições constituídas a fim de envolver cidadãos e grupos definidos no processo de tomada de decisão, visando tanto oferecer como obter informações especializadas, buscar valores públicos, analisar possibilidades e buscar melhores decisões.

Neste contexto, o conceito de participação pública está intimamente relacionada com a democracia participativa, pelo que se agrega ao conceito de participação à proteção de direitos e a legitimação das decisões, na verdade uma obrigação estatal de acordo com os princípios democráticos vigentes.

A partir do momento que se permite o acesso ao cidadão à criticas e reclamações dos serviços públicos postos à disposição da sociedade, utilizando-se de um canal direto e desburocratizado a ser gerenciado por um órgão que detêm competência em perceber e consolidar as demandas para sugerir ações de enfrentamento de problemas de interesse público, podemos concluir que a Ouvidoria é o grande órgão de participação pública capaz de propor ações de cidadania com capacidade para  mudanças estruturais que envolvem o interesse público.

Assim ocorreu com a demanda social acerca da violência contra a mulher.

O Alto Comissariado das Nações Unidas – ACNUDH publicou em 2016 um documento intitulado “diretrizes nacionais para investigar, processar e julgar com Perspectiva de Gêneros as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios”, com base no mapa de violência 2015 produzido pela ONU – Mulheres que considerou o Brasil como o 5º país onde se mais se constatou mortes violentas em razão de gênero.[5]

Por outro lado, o ano de 2020 foi marcado pela crise na saúde pública motivado pela pandemia da Covid-19, quando a sociedade passou por períodos de isolamento social, o que afetou de sobremaneira as mulheres que passaram sofrer mais violência doméstica e enfrentavam dificuldade no acesso aos serviços públicos especialmente aqueles que demandavam presença como os Centros Especializados de Atendimento às Mulheres.

Segundo o relatório “Visível e invisível” – a vitimização de mulheres no Brasil, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e parceiros privados, em média 17 milhões de mulheres foram vítimas de violência entre 2019 e 2020, pelo que afirmou o documento ser a violência de gênero hiperendêmica no Brasil.

Nestas circunstâncias, o Conselho Nacional do Ministério Público instituiu a Ouvidoria das Mulheres no âmbito da Ouvidoria Nacional como um canal alternativo para atender casos de violência contra a mulher com o objetivo de ampliar a rede de apoio, através da Portaria CNMP-PRESI nº 77, de 21/05/2022.

A partir do recebimento das demandas pela Ouvidoria da Mulher do CNMP, verificou-se a necessidade de se expandir os serviços, pelo que foi expedida a Recomendação nº 88/2022 dirigida a todas as Ouvidorias Gerais das unidades e ramos dos Ministérios Públicos a implementação do canal especializado da Ouvidoria das Mulheres, visando garantir o acesso à justiça, através de fluxo rápido e eficaz, com atuação em rede seja entre as unidades dos Ministérios Públicos como nos demais órgãos e instituições envolvidas na prevenção e combate a violência e promoção da equidade de gêneros.

Considerando as unidades e ramos do Ministério Público do Brasil, atualmente contamos com 18 ouvidorias da mulher, que trabalham em canal especializado para a recepção e tratamento desta demanda sensível, que envolve violência, privacidade, família, dignidade da mulher e questões de segurança e necessitam de atenção diferenciada.

Merece ainda ser ressaltado o compromisso das ouvidorias com o retorno das demandas recebidas ao cidadão, garantindo o direito de informação sobre o funcionamento dos serviços, localização das denúncias e manifestações, podendo atuar na promoção de autocomposição.

Pelo que vivemos e depreendemos da atuação dos ouvidores e ouvidoras, antes de ser um órgão de criação compulsória pelos entes que prestam serviços públicos, a Ouvidoria tem sua finalidade e justificativa voltada ao cidadão, à promoção da cidadania, da igualdade, da democracia participativa, pretende garantir acesso à justiça, combater a violência, e ser um grande instrumento de participação pública e defensor dos Direitos Humanos.

 

Enfim, a Ouvidoria não é só para ouvir…

[1] https://www.wribrasil.org.br/noticias/cidades-podem-ter-uma-economia-de-us-17-trilhoes-evitando-o-espraiamentorbano

[2] https://www.gov.br/ouvidorias/pt-br/cidadao/conheca-a-ouvidoria/historia-das-ouvidorias

[3] Art.34, II, da Resolução nº 92, de 13 de março de 2013, do Conselho Nacional do Ministério Público.

[4] Participação Pública: Mecanismos e práticas no contexto da Administração Pública e o caso do orçamento participativo de Lisboa. Autor: Miguel Farinha dos Santos da Silva Graça

[5] https://brasil.un.org/pt-br/72703-onu-taxa-de-feminicidios-no-brasil-e-quinta-maior-do-mundo-diretrizes-nacionais-buscam

 

*Bianca Stella Azevedo Barroso, promotora de Justiça do MPPE. Membra auxiliar da Ouvidoria do Conselho Nacional do Ministério Público. Coordenadora da Ouvidoria da Mulher (CNMP). Coordenadora do Núcleo de Apoio a Mulher do MPPE.  Coordenadora do Grupo de Trabalho de Equidade de Gênero, Direitos LGBT e Estado Laico do CNMP. Membro da Comissão Permanente da Violência Doméstica (COPEVID) Mestranda em Políticas Públicas pela UFPE. Vice Presidenta do MPD

 

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